sábado, 16 de janeiro de 2021

A pedra na estrada de terra


Nos dois dias em que passamos junto de outros amigos, ele havia se mostrado extremamente misterioso. Inquieto, é possível se afirmar, com o olhar distante e a voz rouca em alguns instantes. Tentando desvendar esse enigma, uma vez que se tratava de um amigo muito sadio (contesta-se isso em nossa roda de camaradagem em virtude de seu já conhecido problema de flatulências ante a caminhos diversos que se apresentem e por conta de seus desmaios frequentes), ativo, participativo, comunicativo e nada introspectivo – a não ser sob efeito de tóxicos, coisa que apreciava muito.

– Desembucha aí, bicho, qual foi – tentei pressioná-lo. – Por que cê tá tão esquisitão assim?

– Ah, nada não cara, esquece isso aí meu...

– Tem ninguém ouvindo, pode me contar. Confia.

Ele hesitou. Balbuciando algumas palavras desconexas, ia começar o relato de uma história envolvendo uma padaria que, segundo ele, não poderia mais frequentar, quando o Róbiti entrou na área da churrasqueira da fazenda em que estávamos confraternizando entre amigos.

– Iae manolos.

– Fala, Róbitão – ele cumprimentou. – Te conto depois, é cagado demais pros outros ficarem sabendo agora – emendou pra mim, entre sussurros.

Então, esperei. Esperei pelo momento em que este meu grande amigo, exótico e revestido de notável e hirsuta pelugem, criaria a coragem necessária para me confidenciar o causo que lhe envergonhara tanto, que dizia respeito, pelo que minha atenção às palavras primitivas por ele previamente balbuciadas me permitira captar, a um episódio envolvendo a padaria que ele tanto gostava, perto de sua residência. Teria ele se acidentado lá, quebrando copos e passando vergonha? Teria encontrado uma mosca em seu pingado, ou recebido seu pão na chapa moderadamente morno? Teria ele passado por um de seus episódios de confusão mental? Não, isso não. Certamente se tratava de algo absurdamente vergonhoso, sujo, vil e/ou baixo, uma vez que esse indivíduo, meus caros leitores, esse indivíduo era a representação física da baixa moral, a personificação da podridão idealizada, como que enviado pelos calabouços mais profundos do âmago da sujeira e da libertinagem para atormentar meus dias e semear iniquidade por onde quer que passasse. Mas ainda assim o amava. Um grande amigo.

Foi quando estávamos nos preparando todos para sair em caravana para ir embora que ele tomou coragem e, me convidando para uma caminhada sob o pretexto de conhecer um pouco melhor a propriedade, resolveu me contar o fatídico episódio.

Caminhando nós dois de chinelos naquela estrada de terra, margeada por belas árvores e grama muito bem cuidada de um lado e, do outro, uma cerca que se destinava a evitar o fluxo do gado que nos olhava à distância, encontramos um momento de sossego para que aquele meu grande amigo finalmente me confidenciasse o que afligia sua alma de modo tão catastrófico.

– É dureza, bicho. Aquele meu problema...

– Sei, do peido.

– É, então, eu estava na padaria e... – se deteve enquanto observava, ainda andando, um pequeno bezerro que se aproximava da cerca. – Alá que bonito o bichinho...

– Que? Ah, sim, uma graça mesmo – constatei distraído no momento em que chutava uma pequena pedra. Me peguei imaginando, diante do silêncio que se instalara entre nós dois, que realmente se tratava de um assunto muito embaraçoso. O bezerro nem era tão bonitinho assim e, quando viu as fuças do meu amigo, saiu correndo para longe, como se tivesse visto a morte naquela cara peluda. Os dias entre amigos haviam sido muito bons: bebemos, conversamos, jogamos, demos risada. A simplicidade de momentos como estes me fazia refletir que, tal qual na natureza, que se revelava à nossa frente, é nos instantes mais puros e singelos que podemos encontrar a mais alta beleza. Estar envolvido por ares mais puros instintivamente ativava em mim a frequência mais intensa com a qual tais pensamentos bucólicos me tomavam de assalto. Ainda olhando pra baixo, refletindo sobre como tudo pode ser mais simples e, consequentemente, mais belo, e o quanto nós acabamos por intrincar todas as coisas de maneira desnecessária, poluindo toda essa beleza, me lembrei de uma citação do conhecido escr...

– COOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOORRE NEGO!!!!!

Como uma sirene ululante possuída por quinze demônios falastrões, meu amigo soltou um uivo de espanto e o grito acima reproduzido que, certamente, ecoou por muitos quilômetros à nossa volta, enquanto eu, absolutamente perplexo e desnorteado, não sabia o que estava se passando.

Olhei para frente e, para minha mais absoluta surpresa, vi aquele ser colossal de mais de mil quilos olhar pra nós e saltar por cima da cerca de um metro e meio como se fosse uma bailarina russa em uma cama elástica. A visão daquele boi literalmente pulando a cerca para aterrissar com graciosa dominância na estrada de terra a poucos metros de nós quase me fez paralisar. Digo quase porque, instintivamente, meu senso de autopreservação foi ativado, e, obviamente, ia seguir o conselho do meu amigo e correr.

Passada essa mínima fração de segundo em que encarei o boi pulando a cerca, olhei para o lado. Estava sozinho. Aquilo que era o meu amigo ao meu lado já não se encontrava lá. Rapidamente, olhei para trás, para o caminho que tínhamos percorrido em nossa caminhada. O desavergonhado mal-acabado carcomido de uma figa já estava uns bons 50 metros à frente. Em alguns segundos. Um ou dois. Não sei como, mas certamente na hora da necessidade, aquelas quinze entidades que haviam tomado posse das cordas vocais dele para emitir aquele gutural grito diabólico se converteram em espíritos maratonistas, fazendo aquelas canelinhas peludas correrem como se não houvesse amanhã, mesmo vestindo chinelos Havaianas – que sobreviveram à corrida – e, evidentemente, me largando para morrer.

O que fiz? Bem, corri. O que iria fazer? Ficar olhando para aquele boi gordo e esperando que ele viesse tirar satisfação comigo? Ainda que tenha sido meu amigo quem mexeu com o filho do boi, eu seria o responsável por pagar essa conta. Pois os animais, na verdade, não querem saber de justiça social não. Eles só querem a parte deles. Querem tomar aquilo que entendem como direito, sem garantias constitucionais, sem nem ao menos ouvir (tampouco refletir) sobre a teoria do nexo causal – quem causou o dano foi ele, não eu. Eu era parte ilegítima naquela rixa. A natureza, antes tão admirada por sua simplicidade, também sabia ser isso: implacável! Uma verdadeira indústria do carma. O toma lá, dá cá que não respeita limites.

Depois de alguns instantes correndo, com o caneludo já muitos metros à frente, sem parar para olhar pra trás nem em uma mísera jogada de olhos pelo caminho oposto que seguia, tomando como certo, provavelmente, meu perecimento ante o boi, estranhei uma coisa. Ora, um bovino daquelas dimensões não teria dificuldade alguma em me alcançar em alguns segundos, considerada a distância que estávamos um do outro. Se fosse pra ir, eu provavelmente já teria ido. Desacelerei. Parei. Olhei pra trás: nada de boi. A natureza não havia sido tão impiedosa assim, afinal. Vai se lá saber o que o bicho pretendia, mas o certo é que pulou a cerca em um movimento de puro exibicionismo perante aqueles dois paspalhos que andavam por sua propriedade e seguiu seu rumo para o outro lado. Menos mal. Eu teria ainda histórias pra contar. Quanto a meu amigo, deixei com que continuasse a correr, gastando aquele restinho de energia que sua frágil saúde o permitia gastar.

Sobre a história, fiquei sabendo dias depois. Absolutamente lamentável, triste, de uma vergonha sem fim. Prometi que não falaria para ninguém, e não pronunciei palavra alguma sobre o causo. Certo é que uma coisa é falar. A outra, escrever. E meu amigo peludo, naquele dia, me deu profícua base para que uma bela história fosse escrita.


Um comentário:

  1. Crônica do tipo "tapa na cara", que eu amo...a crônica, não o tapa...maldita língua portuguesa

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