quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Carlinhu 29

Estava prestes a bater seu recorde pessoal de velocidade quando um pequeno alarme interno o fez diminuir a passada. Como um sentido-aranha ou aquela campainha aguda do celular, que quando toca pela manhã quase o faz jogar o aparelho na parede, ele soube, só que de forma mais intimista e até sutil.
E, infelizmente, não estava enganado.
Lá vinha o rapaz novamente, todo alegre e sorridente, numa serelepimpância invejável. O pobre iludido vinha balançando os ombros em um remelexo corporal desengonçado, com seu olhar confiante, absoluto de si mas, coitado, sem fazer nem ideia da repulsa que sua presença causava no outro. O até então quase recordista desacelerou quase por completo a esteira ao notar pelo canto dos olhos que o infeliz sorridente bobo alegre indesejado estava olhando diretamente pra ele, vindo em sua direção.
Brace yourselves...” repetiu mentalmente a célebre frase do seriado, substituindo a sequência da sentença para “o cheiroso está chegando”.
Ele havia começado a frequentar uma academia há algumas semanas. Já se tratava, afinal, de uma cobrança constante que fazia a si mesmo, além das observações de seus conhecidos mais próximos. Certa vez, em um bar, reunido à mesa com mais três amigos, o mais peludo deles observou, com a boca cheia de um grande naco de bolinho de carne:
– Rapaz, mas cê tá ficando é gordão hein seu safado! Quando vai tomar vergonha nessa cara espinhenta de adestrador de pirus e começar a se mexer, mermão? – indagou enquanto empurrava a carne pra dentro com uma golada de cerveja.
– Ahhhhhhh cara… eu tô vendo… tô vendo um lugar aí, mas é muito corrido. Você sabe como é…
– Vai antes do trabalho, ué, para de frescura – disse o outro camarada, o pequenininho, com seu olhar inocente e seu bolinho ainda inteiro em uma das mãozinhas.
– Aí não dá não, cara, cedo demais. Tenho força nem pra levantar da cama, quem diria fazer alguma coisa. Na primeira repetição eu já estou no chão, desmaiado, esperando pela ambul--
– Bicho, então vai no horário de almoço! – interrompeu o primeiro, agora besuntando o bolinho no molho de pimenta. – Cê tem uma puta disponibilidade de horários e nom çeria alfo fifícil pá foxê – enchera a boca com mais um naco. Aquele arretado.
– Também não vai dá nã--
– Qui não vai dá não o quê, cara!! – o pequenino brincou.
– --o, eu sempre tenho um corre pra cumprir – os outros dois deram risada enquanto o terceiro nada dizia, ficava ali comendo e olhando pra ele com uma expressão brincalhona.
“É… esse aí tá bem gordo. Se inchou de uma forma inexplicável” pensou consigo mesmo. “Se eu tô indo pra esse mesmo rumo, melhor tomar vergonha na cara mesmo.”
– Olha, seus palhaços, talvez depois do expediente – disse ao desviar o olhar para seu próprio bolinho, pela metade. Sentiu uma mudança leve no modo com que os amigos o observavam agora. Antes, só deboche. Agora, tinham uma espécie de expectativa. – Sim, beleza, depois do expediente. Daí dá!
Os outros três gritaram em aprovação, causando uma comoção geral às outras mesas que estavam por perto. – Cê vai ver, rapaz, bom demais se mexer e se exercitar, pô! Um brinde a isso! – propôs o peludo, entornando o resto de sua bebida.
Pelo que se lembrava, naquele momento estava feliz. A ideia parecia ótima, e de fato foi muito bom pra ele começar algo daquela natureza. Até aquele momento, até chegar aquele sujeito.
Até aqui, está bem claro que para ele aquele era o único horário disponível para malhar, certo? E, de fato, realmente essa era nada mais, nada menos do que a realidade. Pois, quando diminuiu o ritmo da esteira até quase meio quilômetro por hora, olhando para o nada e relembrando tudo aquilo, fingindo sem sucesso não se aperceber do sorridente bobalhão escorado na esteira ao lado esperando ser notado, se arrependeu amargamente de ter dado ouvido ao pequeninho e ao peludo; se arrependeu de, em vez de fechar a boca para tudo a não ser mais uma mordida no seu bolinho, ter proclamado o seu “Eu digo que fico!” particular e ter sucumbido às zoeiras dos amigos.
Caaammm-hamm--… ham… – o bobalhão paspalho dos quintos estava querendo chamar a atenção do outro. – Opa, e aí, cara!! Você por aqui!
Dessa vez não teve jeito. Começou a virar o rosto devagar para o seu agora interlocutor, que se posicionava bem perto dele, ao passo que automaticamente transferiu sua respiração do nariz para a boca. Isso aliviava um pouco as coisas.
– Ei, e aí, mano! Tudo beleza?
– Bom demais, cara! Tava correndo forte hein? Heheh – lançou a piada e já riu dela em cima. Odiava aquilo nele. Odiava, na verdade, tudo, pois nada mais mudaria aquela imagem que tinha do outro agora. – Bóra treinar então? Bóra bóra?
Calculou, naquele segundo e meio que demorou pra responder, várias hipóteses e possibilidades de resposta para tentar se livrar do sujeito. E, quando fez isso, se esqueceu da concentração para respirar pela boca e inalou o ar pelas narinas. O bobalhão sorridente olhando pra ele nem imaginava, mas o nariz do outro quase queimou e pulou pra fora do rosto de tanto desgosto. Pois, naquele fatídico momento, em que na inocência a atenção se desviou do ponto A ao ponto B e deixou aquele pobre ponto A desprotegido, o motivo de tamanha ojeriza pelo outro se escancarou e o esbofeteou nas fuças, desnudando-se e fulminando-o por completo. Se fosse buscar alguma personificação para aquele odor miserável saído do mais profundo dos calabouços escondidos da humanidade, seria a de um ogro de dois metros de altura, obeso e seboso, com poucos fios de cabelo na cabeça e cego de um olho, pele acinzentada que fumegava e suava sem parar, criando uma camada endurecida e pegajosa de bos--
– Bom, tô indo, chega logo aí cara! – o fedidão interrompeu seu devaneio de agonia.
– Tá, beleza – foi tudo que conseguiu dizer.
Quando o outro se virou, ainda sorrindo como um bobo alegre que fez um novo amigo, viu que sua camiseta trazia nas costas os dizeres “CARLINHU” com o número “29” embaixo. Era uma camiseta de futebol, talvez elaborada e confeccionada por amigos. Não imaginava quem poderia ser amigo daquele poço de enxofre ambulante. Bem, talvez ele não fosse sempre assim, só por lá na academia. Mas a verdade é que a impressão que tinha de Carlinhu 29 era que tudo ligado a ele fedia.
– Você precisa de um banho, Carlos – sussurrou baixinho para si mesmo. Não sabia o nome do sujeito até aquele momento, e poderia nem ser esse. Nunca teve interesse em solidificar uma amizade com o rapaz porque o outro, afinal, fedia como o novato na musculação nunca havia sentido antes.
Observou que Carlinhu 29 nunca falava com mais ninguém. Carlinhu 29, na verdade, viu no pobre diabo uma chance de finalmente se aproximar de alguém por ali: o cara novo, querendo conhecer o local e talvez mais aberto a conhecer gente nova.
E ele, de fato, se sentira assim, no começo. Só não contava com a questão do cheiro. O cheiro de Carlinhu 29 o fazia se arrepender de todos os seus pecados, em um processo que trazia o efeito milagroso de restauração da fé. “Senhor… me tira daqui.”
Não. Não viveria daquele jeito. Se treinar fosse ter que tolerar aquilo, preferia era engordar mesmo e boa. Não devia mais satisfação a ninguém, afinal. Danem-se as calorias. Dane-se o treino. Dane-se o instrutor. Danem-se aqueles aparelhos que ele não precisava mais. Dane-se aquela porcaria toda. Danem-se… os 3 meses que pagara adiantado para não desistir dos exercícios com três ou quatro semanas de adaptação.
Suspirou fundo, abaixou a cabeça e desceu da esteira, agora parada. A movimentação habitual da academia à sua volta era incapaz de perceber todo esse duelo interno que ele travara em questão de segundos: vou… não vou mais, foda-se. Não. Putz. Droga. Tenho que ir.
E, afinal, a saúde e bem-estar das suas narinas teriam que perdoá-lo. Enquanto se encaminhava ao gladiador, aparelho que trazia diversas funções e possibilidades diferentes para exercícios, foi se conformando cada vez mais. Carlinhu 29 estava, com toda a sua caatinga, ali longe, levantando uns pesos feito um bobo alegre. Por ora, tudo bem. Até o momento em que, na sua segunda repetição, observou o bobão olhando pra ele e vindo em sua direção comentar uma besteira qualquer. Com dez metros de distância já era capaz de distinguir aquele cheiro peculiarmente horroroso. “Céus...”
Duas semanas depois, ao sair do trabalho, em vez de ir para a academia, preferiu ir ao bar com seus amigos. O peludo entenderia: lá não tinha cara feia, lá não tinha suor desnecessário e todo mundo era bem cheirosinho.

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