Estava prestes a bater seu recorde pessoal de velocidade quando um
pequeno alarme interno o fez diminuir a passada. Como um
sentido-aranha ou aquela campainha aguda do celular, que quando toca
pela manhã quase o faz jogar o aparelho na parede, ele soube, só
que de forma mais intimista e até sutil.
E, infelizmente, não estava enganado.
Lá vinha o rapaz novamente, todo alegre e sorridente, numa
serelepimpância invejável. O pobre iludido vinha balançando os
ombros em um remelexo corporal desengonçado, com seu olhar
confiante, absoluto de si mas, coitado, sem fazer nem ideia da
repulsa que sua presença causava no outro. O até então quase
recordista desacelerou quase por completo a esteira ao notar pelo
canto dos olhos que o infeliz sorridente bobo alegre indesejado
estava olhando diretamente pra ele, vindo em sua direção.
“Brace yourselves...”
repetiu mentalmente a célebre frase do seriado, substituindo a
sequência da sentença
para “o cheiroso está chegando”.
Ele havia começado a frequentar uma
academia há algumas semanas. Já se tratava, afinal, de uma cobrança
constante que fazia a si mesmo, além das observações de seus
conhecidos
mais próximos. Certa vez, em um bar, reunido à mesa com mais três
amigos, o mais peludo deles observou, com a boca cheia de um grande
naco de bolinho de carne:
– Rapaz, mas cê tá ficando é
gordão hein seu safado! Quando vai tomar vergonha nessa cara
espinhenta de adestrador de pirus e começar a se mexer, mermão? –
indagou enquanto empurrava a carne pra dentro com uma golada de
cerveja.
– Ahhhhhhh cara… eu tô vendo…
tô vendo um lugar aí, mas é muito corrido. Você sabe como é…
– Vai antes do trabalho, ué, para
de frescura – disse o outro camarada, o pequenininho, com seu olhar
inocente e seu bolinho ainda inteiro em uma das mãozinhas.
– Aí não dá não, cara, cedo
demais. Tenho força nem pra levantar da cama, quem diria fazer
alguma coisa. Na primeira repetição eu já estou no chão,
desmaiado, esperando pela ambul--
– Bicho, então vai no horário de
almoço! – interrompeu o primeiro, agora besuntando o bolinho no
molho de pimenta. – Cê tem uma puta disponibilidade de horários e
nom çeria alfo fifícil pá foxê – enchera a boca com mais um
naco. Aquele arretado.
– Também não vai dá nã--
– Qui não vai dá não o quê,
cara!! – o pequenino brincou.
– --o, eu sempre tenho um corre
pra cumprir – os outros dois deram risada enquanto o terceiro nada
dizia, ficava ali comendo e olhando pra ele com uma expressão
brincalhona.
“É… esse aí
tá bem gordo. Se inchou de uma forma inexplicável” pensou consigo
mesmo. “Se eu tô indo pra esse mesmo rumo, melhor tomar vergonha
na cara mesmo.”
– Olha, seus palhaços, talvez
depois do expediente – disse ao desviar o olhar para seu próprio
bolinho, pela metade. Sentiu uma mudança leve no modo com que os
amigos o observavam
agora. Antes, só deboche. Agora, tinham uma espécie de expectativa.
– Sim, beleza, depois do expediente. Daí dá!
Os outros três gritaram em
aprovação, causando uma comoção geral às outras mesas que
estavam por perto. – Cê vai ver, rapaz, bom demais se mexer e se
exercitar, pô! Um brinde a
isso! – propôs o peludo, entornando o resto de sua bebida.
Pelo que se lembrava, naquele
momento estava feliz. A ideia parecia ótima, e de fato foi muito bom
pra ele começar algo daquela natureza. Até aquele momento, até
chegar aquele sujeito.
Até aqui, está
bem claro que para ele aquele era o único horário disponível para
malhar, certo?
E, de fato, realmente essa era nada mais,
nada menos do que a
realidade. Pois, quando diminuiu o ritmo da esteira até quase meio
quilômetro por hora, olhando para o nada e relembrando tudo aquilo,
fingindo sem sucesso não se aperceber do sorridente bobalhão
escorado na esteira ao lado esperando ser notado, se arrependeu
amargamente de ter dado ouvido ao pequeninho e ao peludo; se
arrependeu de, em vez de fechar
a boca para tudo a não ser mais uma mordida no seu bolinho, ter
proclamado
o seu “Eu digo que fico!” particular e
ter sucumbido às zoeiras dos amigos.
– Caaammm-hamm--… ham… –
o bobalhão paspalho dos
quintos estava querendo chamar a atenção do outro. –
Opa, e aí, cara!! Você por
aqui!
Dessa vez não teve jeito. Começou
a virar o rosto devagar para o seu agora interlocutor, que se
posicionava bem perto dele, ao passo que automaticamente transferiu
sua respiração do nariz para a boca. Isso aliviava um pouco as
coisas.
– Ei, e aí, mano! Tudo beleza?
– Bom demais, cara! Tava correndo
forte hein? Heheh – lançou
a piada e já riu dela em cima. Odiava aquilo nele. Odiava, na
verdade, tudo, pois nada mais mudaria aquela imagem que tinha do
outro agora. – Bóra
treinar então? Bóra bóra?
Calculou, naquele segundo e meio que
demorou pra responder, várias hipóteses e possibilidades de
resposta para
tentar se livrar do sujeito. E, quando fez isso, se esqueceu da
concentração para respirar pela boca e inalou o ar pelas narinas. O
bobalhão sorridente olhando pra ele nem imaginava, mas o nariz do
outro quase queimou e pulou pra fora do rosto de tanto desgosto.
Pois, naquele fatídico momento, em que na inocência a atenção se
desviou do ponto A ao ponto B e deixou aquele pobre ponto A
desprotegido, o motivo de tamanha ojeriza pelo outro se escancarou e
o esbofeteou nas fuças, desnudando-se e fulminando-o por completo.
Se fosse buscar alguma personificação para aquele odor miserável
saído do mais profundo dos calabouços escondidos da humanidade,
seria a de um ogro de dois metros de altura, obeso e seboso, com
poucos fios de cabelo na cabeça e cego de um olho, pele acinzentada
que fumegava e suava sem parar, criando uma
camada endurecida e pegajosa
de
bos--
– Bom, tô indo, chega logo aí
cara! – o
fedidão interrompeu seu devaneio de agonia.
– Tá, beleza –
foi tudo que conseguiu dizer.
Quando o outro se virou, ainda
sorrindo como um bobo alegre que fez um novo amigo, viu que sua
camiseta trazia nas costas os dizeres “CARLINHU” com o número
“29” embaixo.
Era uma camiseta de futebol, talvez elaborada e confeccionada por
amigos. Não imaginava quem poderia ser amigo daquele poço de
enxofre ambulante. Bem, talvez ele não fosse sempre assim, só por
lá na academia. Mas a verdade é que a impressão que tinha de
Carlinhu 29 era que tudo ligado a ele fedia.
– Você precisa de um banho,
Carlos – sussurrou
baixinho para si mesmo. Não sabia o nome do sujeito até aquele
momento, e poderia nem ser esse. Nunca teve interesse em solidificar
uma amizade com o rapaz
porque o outro, afinal, fedia
como o novato na musculação
nunca havia sentido antes.
Observou que Carlinhu 29 nunca
falava com mais ninguém. Carlinhu 29, na verdade, viu no pobre
diabo uma chance de
finalmente se aproximar de alguém por ali: o cara novo, querendo
conhecer o local e talvez
mais aberto a conhecer gente nova.
E ele, de fato, se sentira
assim, no começo. Só não contava com a questão do cheiro. O
cheiro de Carlinhu 29 o fazia se arrepender de todos os seus pecados,
em um processo que trazia o
efeito milagroso de
restauração da
fé. “Senhor… me tira daqui.”
Não. Não viveria
daquele jeito. Se treinar fosse ter que tolerar aquilo, preferia era
engordar mesmo e boa. Não devia mais satisfação a ninguém,
afinal. Danem-se
as calorias. Dane-se o treino. Dane-se o instrutor. Danem-se
aqueles aparelhos que ele não precisava mais. Dane-se aquela
porcaria toda. Danem-se…
os 3 meses que pagara adiantado para não
desistir dos exercícios com
três ou quatro semanas de adaptação.
Suspirou fundo, abaixou a cabeça e
desceu da esteira, agora parada. A movimentação habitual da
academia à sua volta era incapaz de perceber todo esse duelo interno
que ele travara em questão de segundos: vou… não vou mais,
foda-se. Não. Putz. Droga. Tenho que ir.
E, afinal, a saúde
e bem-estar das suas narinas teriam que perdoá-lo. Enquanto se
encaminhava ao gladiador, aparelho que trazia diversas funções e
possibilidades diferentes para exercícios, foi se conformando cada
vez mais. Carlinhu 29 estava, com toda a sua caatinga, ali longe,
levantando uns pesos feito um bobo alegre. Por ora, tudo bem. Até
o momento em que, na sua segunda repetição, observou o bobão
olhando pra ele e vindo em sua direção comentar uma besteira
qualquer. Com dez metros de distância já era capaz de distinguir
aquele cheiro peculiarmente horroroso. “Céus...”
Duas semanas depois, ao sair do
trabalho, em vez de ir para a academia, preferiu ir ao bar com seus
amigos. O peludo entenderia: lá não tinha cara feia, lá não tinha
suor desnecessário e todo mundo era bem cheirosinho.
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