sábado, 16 de janeiro de 2021

A pedra na estrada de terra


Nos dois dias em que passamos junto de outros amigos, ele havia se mostrado extremamente misterioso. Inquieto, é possível se afirmar, com o olhar distante e a voz rouca em alguns instantes. Tentando desvendar esse enigma, uma vez que se tratava de um amigo muito sadio (contesta-se isso em nossa roda de camaradagem em virtude de seu já conhecido problema de flatulências ante a caminhos diversos que se apresentem e por conta de seus desmaios frequentes), ativo, participativo, comunicativo e nada introspectivo – a não ser sob efeito de tóxicos, coisa que apreciava muito.

– Desembucha aí, bicho, qual foi – tentei pressioná-lo. – Por que cê tá tão esquisitão assim?

– Ah, nada não cara, esquece isso aí meu...

– Tem ninguém ouvindo, pode me contar. Confia.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Caixas com paraquedas – uma história de Sporcizia Legali

O gélido ar da madrugada fazia com que sua respiração saísse por vezes em vapores em condensação, o que lhe causava a impressão de estar expelindo fumaça pela boca. Consequentemente, se lembrou de figuras como dragões em contos épicos, de um certo personagem de game de luta e daquele outro sujeito da animação que cuspia gelo. Ou fabricava com as mãos, tanto faz. Estava divagando. Aquela cidade, em certos períodos (ou até em momentos isolados), era capaz de provocar mudanças de sensação climática bruscas. Andrico Fassolini jurava que, no dia anterior, fez calor. De qualquer forma, aquilo não importava mais, já que às quatro e meia da manhã em um centro urbano de costumes e percepções exóticas, qualquer situação poderia se materializar. Surpreso ele não ficava mais há um tempo.
Aguardava sozinho há cerca de vinte minutos quando, finalmente, o par de faróis de um veículo conhecido surgiu ao longe.
Enquanto o Peugeot de seu amigo se aproximava, cuspindo mais fumaça pelo escapamento do que Andrico neste tempo todo de espera, um detalhe no banco do carona chamou a atenção do observador que aguardava. Na realidade, não se tratava de uma questão da presença de alguém, pois o motorista estava sozinho.
– Cadê o Hobbit, cara? – perguntou Fassolini assim que o recém-chegado puxou o freio de mão.
– Ué! Achei que ele estaria com você.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Meu amigo peludo

Tenho um amigo muito peludo. Muito amigo, e muito peludo. Meu amigo não por especificamente ser peludo, mas peludo mesmo sendo meu amigo. Uma de suas grandes manias, entre uma ênfase em literatura erótica aqui e menções a sonoplastia visual de obras do segundo escalação do cinema de sua cidade natal ali, era a de liberar ruidosos gases todas as vezes em que era confrontado - talvez por isso ele tenha desistido tão cedo da ideia de ser advogado quando cogitou concluir o curso de direito. 

A ocorrência também se verificava, com certa frequência, quando alguém lhe perguntava algo que o fazia ingressar em dúbios questionamentos internos, como que dividido entre duas opções óbvias onde ele rapidamente deveria escolher um caminho, e foi isso que o colocou em uma verdadeira encruzilhada durante uma simples ida à padaria.

- Crédito ou débito?

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

hoje faz um ano que fechei essa porta mas percebi que deixei a janela entreaberta

a vida costuma trabalhar de formas
inusitadas
o que antes parecia calmaria,
de uma hora pra outra
pode se tornar turbilhão de emoções
desvairadas
como um leve sopro que ao menor
sinal
evolui e se torna
tempestade
fenômeno que varre tudo com força
descomunal
um breve ano afinal
pode parecer
muito
ou até muito
pouco
mas o que não se nega
é que grandes mudanças
pode causar
diante dessa efervescência peculiar
que a vida
parece apresentar
em uma mesma data
uma vida nova pode se
criar
enquanto outra, cansada
enfim repousar
e nessa longa
- ou curta -
rua
pavimentada com um misto de
sensações
no início a vida a
se formar
e ao final outra a
descansar
não se pode deixar de
avançar
pois, afinal,
por mais louca que pareça a
poesia da existência
no ritmo dessa dança
é melhor saber que
o melhor a se fazer é
com a música
dançar.

terça-feira, 27 de junho de 2017

estrelinha brilhante

veio já em meio à tormenta
difícil puxar o ar
difícil começar a
lutar
quando pôde, era fraquinho
o ar que entrava,
que saía,
seus movimentos,
seu descansar
a luta
não cessou
só fez aumentar
o cisquinho tinha que
vencer barreiras
gigantes
maiores do que
o imaginável
o cisquinho
lutou
e quando depois de toda uma longa
angústia
cheia de
dores,
descansou e
já não tinha mais
o brilho em seus
olhinhos,
soube que ela finalmente
tinha ido ser aquilo
que ela veio para
ser
um cisquinho
de brilho distante
mas intenso e
cheio de
luz
lá em cima no
céu
a luta ficou por conta
dos que ficaram, pois
a pequenina
virou estrelinha
brilhante
provando novamente
que o céu é, sim,
lugar de
cachorro.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Diário matinal de uma avenida urbana

Naquele dia o sol castigava aqueles que se expunham a ele mais do que o habitual, seja pela ausência de nuvens ou mesmo pela estação do ano propícia a isso. As árvores exibiam seu verde vivo e forte que dançava em diferentes ritmos à medida que o vento cortejava suas folhas e galhos. Oito horas da manhã e a avenida não estava tão abarrotada como sempre, apesar de contar, em seus dez quilômetros de extensão, com uma considerável quantidade de carros transitando, acelerando, parando, se arriscando, atrasados e sossegados.
Dia comum. A não ser por algumas figuras.
Quilômetro 1,5: no ponto de ônibus lá estava o bêbado, em plena manhã de quarta-feira, conversando com o imaginário ou aquilo que os outros sóbrios – pobres deles – não podiam ver. Gesticulava, enquanto descansava naquele banco destinado aos pacientes futuros passageiros do transporte coletivo. Apontando para o lado, no sentido dos carros que seguiam naquela faixa, soltou uma gargalhada. Certamente era o mais feliz sujeito daquela avenida e um dos mais felizes da cidade inteira, pois não se importava com nada além de seus devaneios surreais. Um sujeito de sorte.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Seiscentos e trinta e quatro

Sentia aquele hálito gelado na nuca enquanto os dedos descarnados dançavam suavemente sob a parte lateral de seu ombro. A imagem de um pobre infeliz como ele lhe apareceu à frente, num estrondoso grito sem voz, de voz que nunca seria ouvida, súplica silenciosa jamais recebida. Permaneceu parado enquanto a encapuzada misteriosa com seu beijo doce de perdição se aproximava cada vez mais; qualquer um poderia ter tentado correr. Sabia que ali, naquele campo, naquele local, naquele momento, este tipo de atitude seria completamente inútil. A figura do condenado à sua frente já não estava ansioso. Aguardava paciente. Não olhava mais pra ele, mas para a Temida atrás dele, que agora segurava com certa firmeza seu braço. O abraço da morte se aproximava. Chovia. Em meio à névoa, três figuras perdidas do mundo da realidade compartilhavam em contemplação reverente aquele pacto fatal que se alinhavava. Palavras humanas seriam insuficientes para descrever aquele tempestuoso, porém sereno momento. Dois condenados, um carrasco. A Morte quase o abraçava e, sentindo frio, mesmo à mercê do gélido toque da Dama de Preto, não se moveu. Sua atenção estava quase toda no sereno sujeito à sua frente que, em meio à escuridão, não estava marcado com a mórbida presença dela como ele estava. Aí, a compreensão e a certeza golpearam instantaneamente o quase-abraçado. Moribundo, ele, quase entregue à morte. O sujeito que encarava, porém, apesar de habitar de forma febril seus raivosos pensamentos, não. Sua jornada, então, teria que chegar ao seu fim. A Morte aproximava suas próprias mãos uma da outra em volta dele, praticamente completando o abraço que o levaria, quando ele se desvencilhou e deu um abrupto passo com firmeza para frente, movimento que fez com que os dedos descarnados e pontiagudos marcassem com profundos cortes seus braços. "Ainda não."

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Cacos ao chão

Normalmente o trânsito naquela hora da manhã era bem truncado e frenético por conta dos tão amados motoqueiros-costureiros apressados. Percorriam-se vinte metros para então ficar parado por pouco mais de um minuto ao se acender o vermelho no sinal. E aquele dia não vinha sendo diferente: Gabriel dos Alencar, com suas raras habilidades automobilísticas, guiava pela faixa da direita da avenida quase atingindo o limite da sua curta paciência.
Parou ao sinal fechado, com cerca de quatro carros à sua frente e o sol mandando suas lembranças ao lamber os pára-brisas dos veículos ali esperando como ele, quando observou o sujeito atravessando a rua na faixa.
Tratava-se do tão conhecido anão japonês daquele bairro, que trabalhava no açougue duas quadras pra frente. Enquanto os olhos de Alencar seguiam o homem que andava a seu próprio ritmo, mal pôde processar a informação de que um estrondoso barulho de motor sendo elevado aos seus limites se aproximava à direita...
E, por conta da pequena distração nipônica, por um pouco não viu quando um verdadeiro animal guiando uma esguia motocicleta vinha a mil pela direita, entre os carros com seus motoristas esperando e os carros estacionados na via.
Quando virou o olhar para o lado, tudo o que conseguiu ver foi o momento em que motoqueiro, agora abaixado para conferir mais aerodinâmica ao seu inconseqüente pilotar, passou moendo tudo ao seu lado, produzindo um triste e doído (para Gabriel) barulho de quebra que não lhe soou nada bom. Todavia, antes mesmo de processar aquela informação, talvez antes mesmo de poder virar o rosto e já no momento em que viu o anão japonês, Gabriel pressentiu o inevitável: seu retrovisor direito restaria pendurado apenas pelos fios, graças às gentilezas daquele motoqueiro absolutamente desequilibrado.
– SEU FILHO DA PU... – não terminou de esbravejar sua polida resposta ao ocorrido pois o arranca-espelhos já se encontrava longe. Obviamente furara o sinal, quase se chocando com o inocente nipônico de baixa estatura que, mais do que todos os outros motoristas ali parados, nada tinha a ver com aquela situação toda.
Indignado e consternado, Alencar recebeu olhares de solidariedade e igual indignação de seus vizinhos de sinal, observando da mesma forma nas feições do rapaz que vendia balas e drops a clara formação de uma expressão de “viiiiiiiiiiish” se anuviando.
– Essas bostas fazem parte, cara! Segue o jogo! – Alguém gritou. Em resposta, acenou com a cabeça e deu um sorriso meio amarelado, pois por dentro fervilhava, tomado por uma profunda ira, que foi se tornando mais branda depois que ele começou a contar suas longas respirações ao buscar diminuir a irritação. Afinal, o sujeito que lhe deu apoio tinha razão.
Na hora de voltar a se movimentar, engatou a primeira e seguiu seu rumo rotineiro, deixando alguns cacos quebrados para trás.
O espelho retrovisor demoraria uma semana e meia para arrumar, e isso depois de quase ser pego pela fiscalização de trânsito da cidade. O motoqueiro imbecil, nunca mais viu. No dia seguinte, já se deparou com o anão japonês de novo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Carlinhu 29

Estava prestes a bater seu recorde pessoal de velocidade quando um pequeno alarme interno o fez diminuir a passada. Como um sentido-aranha ou aquela campainha aguda do celular, que quando toca pela manhã quase o faz jogar o aparelho na parede, ele soube, só que de forma mais intimista e até sutil.
E, infelizmente, não estava enganado.
Lá vinha o rapaz novamente, todo alegre e sorridente, numa serelepimpância invejável. O pobre iludido vinha balançando os ombros em um remelexo corporal desengonçado, com seu olhar confiante, absoluto de si mas, coitado, sem fazer nem ideia da repulsa que sua presença causava no outro. O até então quase recordista desacelerou quase por completo a esteira ao notar pelo canto dos olhos que o infeliz sorridente bobo alegre indesejado estava olhando diretamente pra ele, vindo em sua direção.
Brace yourselves...” repetiu mentalmente a célebre frase do seriado, substituindo a sequência da sentença para “o cheiroso está chegando”.