O gélido ar da madrugada fazia com que sua
respiração saísse por vezes em vapores em condensação, o que lhe causava a
impressão de estar expelindo fumaça pela boca. Consequentemente, se lembrou de
figuras como dragões em contos épicos, de um certo personagem de game de luta e
daquele outro sujeito da animação que cuspia gelo. Ou fabricava com as mãos,
tanto faz. Estava divagando. Aquela cidade, em certos períodos (ou até em
momentos isolados), era capaz de provocar mudanças de sensação climática
bruscas. Andrico Fassolini jurava que, no dia anterior, fez calor. De qualquer
forma, aquilo não importava mais, já que às quatro e meia da manhã em um centro
urbano de costumes e percepções exóticas, qualquer situação poderia se
materializar. Surpreso ele não ficava mais há um tempo.
Aguardava sozinho há cerca de vinte minutos
quando, finalmente, o par de faróis de um veículo conhecido surgiu ao longe.
Enquanto o Peugeot de seu amigo se
aproximava, cuspindo mais fumaça pelo escapamento do que Andrico neste tempo
todo de espera, um detalhe no banco do carona chamou a atenção do observador
que aguardava. Na realidade, não se tratava de uma questão da presença de
alguém, pois o motorista estava sozinho.
– Cadê o Hobbit, cara? – perguntou Fassolini
assim que o recém-chegado puxou o freio de mão.
– Ué! Achei que ele estaria com você.
– Como comigo? Vocês não iam trazer o
carregamento pra dividir?
– Mano, pensei que eu que iria pegar minha
parte aqui com vocês. Não foi isso que tu me disse pelo telefone?
– Armaria meu nego... lógico que não,
Humberto, pelo amor, cara!
– Caceta. Se você não está com o Hobbit e
eu não estou com o Hobbit...
– Ele vai se perder, cara!
A expressão de pavor gélido que tomou o
rosto de Humberto Lucca dispensou qualquer comentário verbal.
Gab Manollo, mais conhecido entre seus
camaradas como Hobbit, ou Gab “The Hobbit” Manollo, ou ainda, em raras
ocasiões, Carvalho de Ferro, era um sujeito absolutamente peculiar. Por
peculiar, algumas de suas esquisitices lhe faziam justiça, mas o sentido a ser
alcançado com o uso desta palavra em específico é o de que Gab era uma pessoa
única. Todas as pessoas são únicas, mas este sujeito era ainda mais do que
todos os outros. De modos simples, palavras curtas e um sorriso inocente no
rosto, Gab representava tudo aquilo que muitas vezes faltava aos outros:
amabilidade imensa, um grande senso de justiça em momentos de relevante tensão,
inocência de um infante puro e juvenil, simplicidade no modo de encarar as controvérsias
e uma expertise absolutamente assombrosa
em cerca de quatro artes marciais. Qualquer um que mexesse com Manollo poderia
certamente ser convertido em um saco de pancadas, mas não sem antes ser
exortado por meio de um dos curtos sermões de boa convivência e moral que Gab
gostava de dar.
Em contrapartida, o Hobbit também causava
preocupações. Seus modos de extrema inocente ternura o colocavam, não raro, em
situações de perigo iminente e embaraço aparente. Apresentava tal figura, do
mesmo modo, com sua baixa estatura, mas seu coração gigantesco, um dom irremediável
para se perder, o que, aliado às suas miseráveis habilidades automobilísticas,
fazia com que seus amigos sempre buscassem lhe dar caronas a todos os lugares
para onde iam.
– Na verdade eu acho que ele já se perdeu –
constatou Andrico, pressionando a nuca com os dedos para tentar aliviar um
pouco o nervosismo aparente.
– Eu não cheguei nem a falar com ele hoje –
disse Humberto ao descer do carro – Ontem à noite você me ligou, disse que ele
iria estar com você e...
– Não, cara, não disse isso.
– Ora, mas se eu tô falando que disse,
então foi o que eu ouvi, bicho.
– Olha, esse carregamento é importante. A
turma do Higipa e da Crisália vai ficar pilhada se souber que a gente não
entregou essas caralhas.
– Cê acha que eu não sei? – Humberto estava,
ao proferir tais palavras, de cócoras, refletindo sob a luz fraca do único
poste funcionando em um raio de 85 metros. Sabia que Andrico era um tanto
quanto paranoico, ainda mais após o incidente da lajota – que será narrado em outra
ocasião. Contudo, considerava um exagero imenso que o amigo marcasse encontros
tão às escondidas, em bairros tão afastados e em horários tão desconfortáveis.
Afinal, a atividade na qual eles estavam engajados no momento não era tão
ilícita assim, conforme os preceitos que o próprio Humberto havia imposto ao
seu subconsciente.
– Não vão mais confiar na gente. No começo
é complicado perder possíveis clientes tão bons quanto esses bares aí.
– Cara, o carregamento estava com quem?
– Eu passei o endereço para o Hobbit passar
para você. Vocês dois iriam buscar e depois vir pra cá, eu te expliquei isso
pelo telefone.
– E por que não me passou o endereço,
porra?!
– Mano, o Hobbit estava comigo quando eu
fui encontrar o contato! Já peguei o papel com o endereço e passei pra ele, mas
disse pra ele te esperar, cara!
– O Hobbit você sabe como é...
– Lógico que sei, mas imaginei que ele não
iria querer ir sem você.
– Pelo jeito foi.
– Foi, né.
Fez-se ouvir um uivo distante de um cão
injuriado, o que causou um repentino calafrio em Andrico, que olhou para a
direção do uivo em um rápido reflexo.
– Não caga não.
– Vê se me erra, animal – Fassolini estava
começando a entrar em desespero, apesar da tentativa extrema de evitar demonstrar
tal situação ao amigo.
Já de pé, encostado no carro agora gelado
pelo vento frio da madrugada, Humberto perguntou se Andrico se lembrava de ao
menos algum detalhe do tal do endereço. Andrico, já suando frio, admitiu que
nem chegou a abrir o papel.
– Agora chega! – exclamou Humberto
repentinamente, causando outro sobressalto em Andrico. – Cê só pode estar de
brincadeira! Vamos melhorar, hein amigão!
– Ave... foi algo que nem pensei direito.
– Percebe-se.
– Pra onde você tá indo, bicho? – Andrico
perguntou quando Humberto se enfiou de novo dentro de seu Peugeot prateado.
– Vou lá no Hobbit, ué. Melhor você ficar
aqui, caso ele apareça. Né?
– Tá ok.
– Falô.
– Qualquer coisa me liga, que eu já tô com
os bagos congelados.
– Nem tá tão frio assim, mano... – comentou
Humberto logo antes de engatar a primeira e arrancar com o veículo.
– Frio, frio não tá, né – sussurrou Fassolini
para si mesmo. – Mas eu tô cagado no apavoro.
Dito isso, aguardou. Incrivelmente, ao que
parecia antes ser um período em que a noite ficaria ainda mais fria, tendo
Andrico já planejado aguardar dentro de seu próprio carro, o passar dos minutos
trouxe um certo calor à madrugada londrinense, sem acalentar, porém, os nervos
preocupados de Fassolini.
Passada meia hora do momento em que
Humberto partiu em busca de Gab Manollo, Andrico havia arquitetado um pequeno
plano emergencial, buscando prever onde poderia encontrar o pequeno
companheiro, quando, para seu extremo alívio, avistou na direção contrária à
que Humberto havia aparecido antes os faróis que identificou como os do veículo
do Hobbit.
Porém, o alívio durou pouco tempo.
Milésimos de segundo. A forma como o carro estava vindo em sua direção foi a
responsável por reacender o temor em Fassolini, que observou, atônito, que
Hobbit dirigia a uma velocidade incrível para seus próprios padrões, em um
ziguezague absolutamente desproporcional e inadequado. Para sua sorte, o
motorista conseguiu frear a poucos metros de distância, pois se continuasse seu
percurso imprevisível, teria grandes chances de atropelar Fassolini.
– Ô HOBBITÊ! – gritou Andrico ao se
encaminhar, correndo, à janela do motorista. – Que porra é essa, mano?
– COÉ MANOLÃO!! – exclamou com alegria Gab “The
Hobbit” Manollo. – QUE SALDADI DE VC BICHO!!
– Hobbit... que diabos...
Não teve tempo de questionar. Abrindo a
porta de maneira brusca, Hobbit acertou o corpo de Andrico que, gemendo de dor,
quase caiu no chão. Só não desmoronou porque o mesmo Hobbit, em um movimento agitado
e tresloucado, abraçou o amigo com seus braços torneados.
Andrico percebeu então que Hobbit estava
sem camisa e suava muito.
– Bicho... me larga... vou te levar pra
cas... – não conseguiu terminar a frase, pois Hobbit, absolutamente desvairado
e alterado, gritava palavras como “QUE CASA O QUÊ, CARA” e “FICA DE BOA AÍ”,
balbuciando também, de forma igualmente inexplicável, a palavra “MINHA”.
Tentando se desvencilhar daquele abraço apertado
e daquela cena absolutamente bizarra que havia tomado conta do local, com um
carro corretamente estacionado, outro com os faróis acesos, porta aberta e
atravessado no meio da pista e uma dupla de homens se engalfinhando, um com um
metro e oitenta, magro e com habilidade motora equivalente a de uma salamandra,
outro de um metro e cinquenta e cinco, musculoso e faixa preta em diversas modalidades
esportivas, tudo isso por volta das cinco e quinze de uma manhã de quinta-feira
em uma rua deserta, Fassolini se tornou presa fácil de seu amigo que, com um
mata-leão vigoroso, praticamente escalando o outro e se grudando nele como um
carrapato sedento, aplicou o golpe com extrema destreza, mesmo se encontrando
alterado.
– Seu filho duma ég... – e desmaiou, dessa
vez caindo no chão ao ser solto por Gab.
O pequeno lutador, ao observar o que havia
feito, balbuciou um “IH COROI”, pegou seu celular e começou a digitar
furiosamente. Logo após, guardou o aparelho, entrou no carro e arrancou com
violência.
“O ANRICKOS T A MALS NO CHA~~O DERUBBWEI
ELE”. Humberto não precisou tentar ler novamente a mensagem recebida para dar
meia volta com seu Peugeot e se apressar para o ponto de encontro combinado,
encontrando lá seu amigo Andrico desacordado e adotando com rapidez as
diligências necessárias para assisti-lo.
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Às sete e quarenta e quatro da ensolarada manhã
que se seguiu, Humberto refletia sentado em um dos bancos do campus
universitário estadual da cidade com um aspecto sereno, mal se apercebendo das
pessoas que passavam à sua frente. “Diversas vidas, inúmeras histórias”, pensou
ele quando um Andrico Fassolini de óculos escuros, com o rosto todo amassado,
um corte no supercílio obtido na queda após o desmaio e um copo de plástico com
café quente em mãos se sentou ao seu lado.
– O filho da puta do Hobbit sumiu com o Red
Bull – disse, se referindo ao carregamento.
– Não sumiu não – respondeu Humberto, ainda
sereno, sem mover a cabeça.
– Como assim? Como você sabe?
– Tá ali, oh.
Fassolini olhou. A cerca de 50 metros
adiante, viu uma cena que jamais imaginaria presenciar. Em meio a uma pequena
muvuca, viu várias pessoas carregando latas de Red Bull. Algumas ainda pegavam
em quantidade maior, mas a fonte de todas era a mesma: duas caixas de madeira
enormes, com um paraquedas atrelado em cada, estavam tombadas sem suas tampas, que
estavam jogadas longe, e, de dentro delas, repousavam no chão diversas latas de
Red Bull.
– Já cataram um monte – explicou Humberto. –
Tô aqui há dez minutos e já vi um vai e vem danado. Tinha gente no começo que estava
meio cabreira, mas agora já estão perdendo a vergonha.
– Meu santo Deus...
– É, Fassa. O Hobbitão fudeu a gente.
A ideia desta empreitada era simples:
coletar o carregamento de Red Bull contrabandeado, entregue em duas caixas grandes
pelo contato arrumado por outro membro do grupo e levar cada uma a um bar
diferente na cidade, conforme previamente combinado: Higipa e Crisália.
Acontece que entregaram as caixas e, como
gesto de boa vizinhança, uma porção de substâncias alucinógenas de brinde. Se as
bebidas estavam ou não adulteradas, não sabiam dizer.
– O Hobbit usou o bagulho que entregaram
junto.
– Ah é, é?
– É. O sem noção já mandou o barato no
carro, e ficou doido.
– Tá onde agora, o infeliz? – perguntou
Andrico enquanto dava uma bebericada nervosa em sua bebida, não conseguindo
desviar o olhar do saque que acontecia adiante, imaginando corretamente que os
alunos que pegavam as latas imaginavam estar participando de uma campanha de
divulgação da empresa.
– Apagadão. Encontrei ele tentando entrar na
própria garagem, mas acelerando o carro no muro.
Com um gesto de cabeça, Andrico concordou.
Enquanto observavam (Humberto estava agora olhando também), um estudante alto e
exótico, conhecido entre o grupo deles por Bem-Vindo, chegou perto das caixas e
recolheu uma generosa quantidade de latas, jogando tudo dentro da bolsa.
– Olha lá o Bem-Vindo. Vai ficar doidão, se
tiver merda nessa porra.
– Já é.
– Tem aula né? Bora lá?
– Vamos, fazer o quê.
– Hobbit cuzão...
– Pior.
– Paraquedas, mano? Caixa com paraquedas?
Da onde ele tirou isso?!
– Vai saber, cara. Vambora.
Com isso, se levantaram e se encaminharam ao
seu centro de estudos, não sem antes passar pelas caixas, sem demonstrar reação,
contrastando sobremaneira com os outros transeuntes e já imaginando o que
falariam para os donos dos bares – que já tinham realizado parte dos
pagamentos.
O Hobbit, que também estudava lá, não foi para
a aula naquele dia.
Texto muito bem escrito. Tem muita coisa boa no blog, e esse texto entra na categoria de coisas boas daqui.
ResponderExcluirÓtimo texto, pra variar, do blog. Escritor talentoso, criativo e um narrador nato
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