quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Caixas com paraquedas – uma história de Sporcizia Legali

O gélido ar da madrugada fazia com que sua respiração saísse por vezes em vapores em condensação, o que lhe causava a impressão de estar expelindo fumaça pela boca. Consequentemente, se lembrou de figuras como dragões em contos épicos, de um certo personagem de game de luta e daquele outro sujeito da animação que cuspia gelo. Ou fabricava com as mãos, tanto faz. Estava divagando. Aquela cidade, em certos períodos (ou até em momentos isolados), era capaz de provocar mudanças de sensação climática bruscas. Andrico Fassolini jurava que, no dia anterior, fez calor. De qualquer forma, aquilo não importava mais, já que às quatro e meia da manhã em um centro urbano de costumes e percepções exóticas, qualquer situação poderia se materializar. Surpreso ele não ficava mais há um tempo.
Aguardava sozinho há cerca de vinte minutos quando, finalmente, o par de faróis de um veículo conhecido surgiu ao longe.
Enquanto o Peugeot de seu amigo se aproximava, cuspindo mais fumaça pelo escapamento do que Andrico neste tempo todo de espera, um detalhe no banco do carona chamou a atenção do observador que aguardava. Na realidade, não se tratava de uma questão da presença de alguém, pois o motorista estava sozinho.
– Cadê o Hobbit, cara? – perguntou Fassolini assim que o recém-chegado puxou o freio de mão.
– Ué! Achei que ele estaria com você.

– Como comigo? Vocês não iam trazer o carregamento pra dividir?
– Mano, pensei que eu que iria pegar minha parte aqui com vocês. Não foi isso que tu me disse pelo telefone?
– Armaria meu nego... lógico que não, Humberto, pelo amor, cara!
– Caceta. Se você não está com o Hobbit e eu não estou com o Hobbit...
– Ele vai se perder, cara!
A expressão de pavor gélido que tomou o rosto de Humberto Lucca dispensou qualquer comentário verbal.
Gab Manollo, mais conhecido entre seus camaradas como Hobbit, ou Gab “The Hobbit” Manollo, ou ainda, em raras ocasiões, Carvalho de Ferro, era um sujeito absolutamente peculiar. Por peculiar, algumas de suas esquisitices lhe faziam justiça, mas o sentido a ser alcançado com o uso desta palavra em específico é o de que Gab era uma pessoa única. Todas as pessoas são únicas, mas este sujeito era ainda mais do que todos os outros. De modos simples, palavras curtas e um sorriso inocente no rosto, Gab representava tudo aquilo que muitas vezes faltava aos outros: amabilidade imensa, um grande senso de justiça em momentos de relevante tensão, inocência de um infante puro e juvenil, simplicidade no modo de encarar as controvérsias e uma expertise absolutamente assombrosa em cerca de quatro artes marciais. Qualquer um que mexesse com Manollo poderia certamente ser convertido em um saco de pancadas, mas não sem antes ser exortado por meio de um dos curtos sermões de boa convivência e moral que Gab gostava de dar.
Em contrapartida, o Hobbit também causava preocupações. Seus modos de extrema inocente ternura o colocavam, não raro, em situações de perigo iminente e embaraço aparente. Apresentava tal figura, do mesmo modo, com sua baixa estatura, mas seu coração gigantesco, um dom irremediável para se perder, o que, aliado às suas miseráveis habilidades automobilísticas, fazia com que seus amigos sempre buscassem lhe dar caronas a todos os lugares para onde iam.
– Na verdade eu acho que ele já se perdeu – constatou Andrico, pressionando a nuca com os dedos para tentar aliviar um pouco o nervosismo aparente.
– Eu não cheguei nem a falar com ele hoje – disse Humberto ao descer do carro – Ontem à noite você me ligou, disse que ele iria estar com você e...
– Não, cara, não disse isso.
– Ora, mas se eu tô falando que disse, então foi o que eu ouvi, bicho.
– Olha, esse carregamento é importante. A turma do Higipa e da Crisália vai ficar pilhada se souber que a gente não entregou essas caralhas.
– Cê acha que eu não sei? – Humberto estava, ao proferir tais palavras, de cócoras, refletindo sob a luz fraca do único poste funcionando em um raio de 85 metros. Sabia que Andrico era um tanto quanto paranoico, ainda mais após o incidente da lajota – que será narrado em outra ocasião. Contudo, considerava um exagero imenso que o amigo marcasse encontros tão às escondidas, em bairros tão afastados e em horários tão desconfortáveis. Afinal, a atividade na qual eles estavam engajados no momento não era tão ilícita assim, conforme os preceitos que o próprio Humberto havia imposto ao seu subconsciente.
– Não vão mais confiar na gente. No começo é complicado perder possíveis clientes tão bons quanto esses bares aí.
– Cara, o carregamento estava com quem?
– Eu passei o endereço para o Hobbit passar para você. Vocês dois iriam buscar e depois vir pra cá, eu te expliquei isso pelo telefone.
– E por que não me passou o endereço, porra?!
– Mano, o Hobbit estava comigo quando eu fui encontrar o contato! Já peguei o papel com o endereço e passei pra ele, mas disse pra ele te esperar, cara!
– O Hobbit você sabe como é...
– Lógico que sei, mas imaginei que ele não iria querer ir sem você.
– Pelo jeito foi.
– Foi, né.
Fez-se ouvir um uivo distante de um cão injuriado, o que causou um repentino calafrio em Andrico, que olhou para a direção do uivo em um rápido reflexo.
– Não caga não.
– Vê se me erra, animal – Fassolini estava começando a entrar em desespero, apesar da tentativa extrema de evitar demonstrar tal situação ao amigo.
Já de pé, encostado no carro agora gelado pelo vento frio da madrugada, Humberto perguntou se Andrico se lembrava de ao menos algum detalhe do tal do endereço. Andrico, já suando frio, admitiu que nem chegou a abrir o papel.
– Agora chega! – exclamou Humberto repentinamente, causando outro sobressalto em Andrico. – Cê só pode estar de brincadeira! Vamos melhorar, hein amigão!
– Ave... foi algo que nem pensei direito.
– Percebe-se.
– Pra onde você tá indo, bicho? – Andrico perguntou quando Humberto se enfiou de novo dentro de seu Peugeot prateado.
– Vou lá no Hobbit, ué. Melhor você ficar aqui, caso ele apareça. Né?
– Tá ok.
– Falô.
– Qualquer coisa me liga, que eu já tô com os bagos congelados.
– Nem tá tão frio assim, mano... – comentou Humberto logo antes de engatar a primeira e arrancar com o veículo.
– Frio, frio não tá, né – sussurrou Fassolini para si mesmo. – Mas eu tô cagado no apavoro.
Dito isso, aguardou. Incrivelmente, ao que parecia antes ser um período em que a noite ficaria ainda mais fria, tendo Andrico já planejado aguardar dentro de seu próprio carro, o passar dos minutos trouxe um certo calor à madrugada londrinense, sem acalentar, porém, os nervos preocupados de Fassolini.
Passada meia hora do momento em que Humberto partiu em busca de Gab Manollo, Andrico havia arquitetado um pequeno plano emergencial, buscando prever onde poderia encontrar o pequeno companheiro, quando, para seu extremo alívio, avistou na direção contrária à que Humberto havia aparecido antes os faróis que identificou como os do veículo do Hobbit.
Porém, o alívio durou pouco tempo. Milésimos de segundo. A forma como o carro estava vindo em sua direção foi a responsável por reacender o temor em Fassolini, que observou, atônito, que Hobbit dirigia a uma velocidade incrível para seus próprios padrões, em um ziguezague absolutamente desproporcional e inadequado. Para sua sorte, o motorista conseguiu frear a poucos metros de distância, pois se continuasse seu percurso imprevisível, teria grandes chances de atropelar Fassolini.
– Ô HOBBITÊ! – gritou Andrico ao se encaminhar, correndo, à janela do motorista. – Que porra é essa, mano?
– COÉ MANOLÃO!! – exclamou com alegria Gab “The Hobbit” Manollo. – QUE SALDADI DE VC BICHO!!
– Hobbit... que diabos...
Não teve tempo de questionar. Abrindo a porta de maneira brusca, Hobbit acertou o corpo de Andrico que, gemendo de dor, quase caiu no chão. Só não desmoronou porque o mesmo Hobbit, em um movimento agitado e tresloucado, abraçou o amigo com seus braços torneados.
Andrico percebeu então que Hobbit estava sem camisa e suava muito.
– Bicho... me larga... vou te levar pra cas... – não conseguiu terminar a frase, pois Hobbit, absolutamente desvairado e alterado, gritava palavras como “QUE CASA O QUÊ, CARA” e “FICA DE BOA AÍ”, balbuciando também, de forma igualmente inexplicável, a palavra “MINHA”.
Tentando se desvencilhar daquele abraço apertado e daquela cena absolutamente bizarra que havia tomado conta do local, com um carro corretamente estacionado, outro com os faróis acesos, porta aberta e atravessado no meio da pista e uma dupla de homens se engalfinhando, um com um metro e oitenta, magro e com habilidade motora equivalente a de uma salamandra, outro de um metro e cinquenta e cinco, musculoso e faixa preta em diversas modalidades esportivas, tudo isso por volta das cinco e quinze de uma manhã de quinta-feira em uma rua deserta, Fassolini se tornou presa fácil de seu amigo que, com um mata-leão vigoroso, praticamente escalando o outro e se grudando nele como um carrapato sedento, aplicou o golpe com extrema destreza, mesmo se encontrando alterado.
– Seu filho duma ég... – e desmaiou, dessa vez caindo no chão ao ser solto por Gab.
O pequeno lutador, ao observar o que havia feito, balbuciou um “IH COROI”, pegou seu celular e começou a digitar furiosamente. Logo após, guardou o aparelho, entrou no carro e arrancou com violência.
“O ANRICKOS T A MALS NO CHA~~O DERUBBWEI ELE”. Humberto não precisou tentar ler novamente a mensagem recebida para dar meia volta com seu Peugeot e se apressar para o ponto de encontro combinado, encontrando lá seu amigo Andrico desacordado e adotando com rapidez as diligências necessárias para assisti-lo.

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Às sete e quarenta e quatro da ensolarada manhã que se seguiu, Humberto refletia sentado em um dos bancos do campus universitário estadual da cidade com um aspecto sereno, mal se apercebendo das pessoas que passavam à sua frente. “Diversas vidas, inúmeras histórias”, pensou ele quando um Andrico Fassolini de óculos escuros, com o rosto todo amassado, um corte no supercílio obtido na queda após o desmaio e um copo de plástico com café quente em mãos se sentou ao seu lado.
– O filho da puta do Hobbit sumiu com o Red Bull – disse, se referindo ao carregamento.
– Não sumiu não – respondeu Humberto, ainda sereno, sem mover a cabeça.
– Como assim? Como você sabe?
– Tá ali, oh.
Fassolini olhou. A cerca de 50 metros adiante, viu uma cena que jamais imaginaria presenciar. Em meio a uma pequena muvuca, viu várias pessoas carregando latas de Red Bull. Algumas ainda pegavam em quantidade maior, mas a fonte de todas era a mesma: duas caixas de madeira enormes, com um paraquedas atrelado em cada, estavam tombadas sem suas tampas, que estavam jogadas longe, e, de dentro delas, repousavam no chão diversas latas de Red Bull.
– Já cataram um monte – explicou Humberto. – Tô aqui há dez minutos e já vi um vai e vem danado. Tinha gente no começo que estava meio cabreira, mas agora já estão perdendo a vergonha.
– Meu santo Deus...
– É, Fassa. O Hobbitão fudeu a gente.
A ideia desta empreitada era simples: coletar o carregamento de Red Bull contrabandeado, entregue em duas caixas grandes pelo contato arrumado por outro membro do grupo e levar cada uma a um bar diferente na cidade, conforme previamente combinado: Higipa e Crisália.
Acontece que entregaram as caixas e, como gesto de boa vizinhança, uma porção de substâncias alucinógenas de brinde. Se as bebidas estavam ou não adulteradas, não sabiam dizer.
– O Hobbit usou o bagulho que entregaram junto.
– Ah é, é?
– É. O sem noção já mandou o barato no carro, e ficou doido.
– Tá onde agora, o infeliz? – perguntou Andrico enquanto dava uma bebericada nervosa em sua bebida, não conseguindo desviar o olhar do saque que acontecia adiante, imaginando corretamente que os alunos que pegavam as latas imaginavam estar participando de uma campanha de divulgação da empresa.
– Apagadão. Encontrei ele tentando entrar na própria garagem, mas acelerando o carro no muro.
Com um gesto de cabeça, Andrico concordou. Enquanto observavam (Humberto estava agora olhando também), um estudante alto e exótico, conhecido entre o grupo deles por Bem-Vindo, chegou perto das caixas e recolheu uma generosa quantidade de latas, jogando tudo dentro da bolsa.
– Olha lá o Bem-Vindo. Vai ficar doidão, se tiver merda nessa porra.
– Já é.
– Tem aula né? Bora lá?
– Vamos, fazer o quê.
– Hobbit cuzão...
– Pior.
– Paraquedas, mano? Caixa com paraquedas? Da onde ele tirou isso?!
– Vai saber, cara. Vambora.
Com isso, se levantaram e se encaminharam ao seu centro de estudos, não sem antes passar pelas caixas, sem demonstrar reação, contrastando sobremaneira com os outros transeuntes e já imaginando o que falariam para os donos dos bares – que já tinham realizado parte dos pagamentos.
O Hobbit, que também estudava lá, não foi para a aula naquele dia.


2 comentários:

  1. Texto muito bem escrito. Tem muita coisa boa no blog, e esse texto entra na categoria de coisas boas daqui.

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  2. Ótimo texto, pra variar, do blog. Escritor talentoso, criativo e um narrador nato

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