– Ei, cara – ele me acordou,
enquanto me cutucava com a pata. Parecia já estar tentando chamar minha atenção
há um tempo. – Acorda aí, cara.
Abri os olhos lentamente.
Inicialmente, não me dei conta de nada diferente. Mas, aos poucos, comecei a
estranhar essa situação como um todo. Existia algo no mínimo peculiar
acontecendo.
– Isso aí, mermão. Agora
levanta, vamos lá, vamo batê perna – ele insistia, inquieto, visivelmente
alegre por ter despertado minha atenção. Sorria, com a língua para fora, e dava
pulinhos de animação. Abanava o rabinho.
Aí, me toquei.
Acreditei que ainda estava
sonhando, pois pasmei enquanto constatava vagarosamente que eu estava ouvindo
claramente meu cachorro falar comigo.
– E aí? Puxou um roncão nervoso
ou tá boladão ainda? – retrucou alegremente Bono.
– Eu... estou legal, cara –
quebrei meu silêncio, em resposta.
– Beleza, meu chapa! Beleza! –
a animação dele não era aplacada por nada neste mundo.
Olhei em volta. O cenário que
nos envolvia não tinha nada de especial. Na verdade, sua singularidade se
resumia justamente à presença de um nada constante e intrigante. Estávamos
ambos sentados sobre um gramado, com uma imensidão branca que se estendia ao
redor de nós dois. Eu e meu cachorro, na grama, e nada mais em volta.
– O que está acontecendo? –
perguntei, para notar logo em seguida, pela leve hesitação dele, que ele também
não sabia a resposta.
– Não sei o que tá rolando não,
véi. Só sei que tô de boa.
– É bom poder conversar com
você, Bono.
– Sussa. Tô feliz também, por você
finalmente entender, cabeçudo. Por todos esses anos eu falava, falava, e você
sempre me olhava com essa cara de pastel sem entender porcaria nenhuma – ele
riu.
Eu também ri.
Contudo, o clima não me parecia
muito de felicidade. Soava, para mim, como algo mais profundo, algo para o qual
eu não estava preparado.
– Cêis sempre foram todos tão
gente fina – ele comentou, chamando novamente minha atenção.
– Como assim, cara? O que nós
fizemos de especial?
– Uai, cêis sempre limparam as
merdas que eu ia largando na calçada, cara! – ele riu novamente, e desta vez eu
também soltei um riso mais espontâneo e despreocupado.
Mais um momento de quietude.
Paz. Aquele lugar me lembrava paz. E algo mais.
– Mas, na real agora. A galera
sempre me tratou legal. E eu sempre senti algo bom de vocês.
Ele olhava para frente agora.
Me concentrei na feição serena dele.
– O quê, Bono?
– Amor, cara. – ele respondeu
sem vacilar. – Isso sempre me fez feliz.
Desta vez, foi minha vez de
começar a sorrir.
– Você era um cachorro
extremamente hiperativo – eu disse. – E louco. E histérico. E dramático.
Ele também ria, enquanto eu
acariciava a cabeça dele do jeito que ele sempre gostou.
– Eu te amo, cara. Amo todos
vocês que cuidaram de mim – Bono comentou. – Obrigado, meu amigo.
Aquilo me fez entender,
finalmente. Entender que aquilo, apesar de ser um sonho, se tratava de uma
despedida entre nós dois. Aquele lugar bonito, sereno, de paz e tranquilidade, era
o palco de nosso “até logo”. Compreendi que o sentimento que anteriormente eu
não detectara era nada menos do que a melancólica e negra aproximação de uma
despedida. Olhei para ele.
– Bono... você está bem?
– Tô legalzão, cara.
– Fico feliz por isso.
– Não, sério, meu chapa, pode
ficar sossegado. Eu to na paz. Tô de boa mesmo.
Eu não soube responder. Somente
continuei acariciando a cabeça dele, com carinho. Meu cachorrinho.
Então, quando eu menos
esperava, tudo à minha volta pareceu ficar um tanto quanto nublado para mim.
Ele, a grama, e até mesmo a brancura que nos envolvia. Eu sentia que,
possivelmente, eu estava acordando.
– Agora eu tenho que ir, cara –
ele me disse.
– Bono... – eu não encontrei
palavras para me despedir.
Ele não disse mais nada. Era
calmaria, serenidade. Nos olhávamos, com olhos marejados, mas espíritos cheios
da mais profunda paz.
– Obrigado, Bono.
Ele sorriu. Colocou a língua
para fora, enquanto sorria.
Eu olhava para ele, e agora
tudo se desvanecia mais rápido. Observava-o sorrindo, com aquela língua para
fora. Me olhando, tranquilo. Aquela imagem foi sumindo, até o momento em que
não sobrou quase nada dela e eu tive a certeza de que não mais veria no meu dia
a dia aquela pequena tripa peluda e histérica pulando, correndo, latindo e
festejando com todos à sua volta. Pois um cão tem a vida curta justamente
porque já nasce aplicando com todas as suas forças aquilo que nós, humanos,
levamos uma vida toda para aprender (e, muitas vezes, uma vida inteira não é
suficiente). Os cães já nascem prontos para amar incondicionalmente.
Acordei.
Não demorei muito para assimilar
tudo o que ocorrera. E quando a compreensão tomou conta de mim, eu tinha uma
lágrima nos olhos e a saudade já instalada no coração.
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