Na época, meu irmão tinha seis
anos. Era mais uma criança feliz, saudável e esperta, que frequentava a
escolinha e não tinha problemas de convivência com nenhum de seus colegas,
professores ou familiares. Estava todo tempo a matraquear pelos cantos,
correndo e brincando como se não houvesse amanhã. Seus olhos grandes e de um
verde claro expressavam de sobremaneira todo seu alegre e constante estado de
espírito.
Apesar de toda a intensidade
física das correrias e brincadeiras de meu irmão mais novo, o bairro em que
morávamos, no centro da capital paranaense, não permitia que a criança saísse
às ruas de modo que nossa mãe ficasse sossegada, já que o local era,
essencialmente, urbano e muito movimentado. Residíamos em um apartamento alto,
bem no meio de uma grande avenida que contava com diversas lojas e
estabelecimentos. A frequente e, por vezes, perigosa rotina urbana daquele
local trancafiava a mim e ao meu irmão em casa sozinhos, todas as tardes,
depois da escola.
Certa tarde de inverno, o
apartamento todo fechado, meu irmão, em meio a uma partida de videogame, me
confidenciou algo que, pela sua fala, soava como um forçoso momento em que se
procura fazer o outro acreditar que aquilo que se está dizendo trata-se da
coisa mais normal do mundo:
– Ontem à noite ele foi lá me
ver.
Naquele instante, não dei muita
bola, pois estávamos prestes a iniciar uma nova partida. Simplesmente concordei
com um “a-ham”, tomando por certo de que se tratava de nosso pai.
Alguns dias depois, pela parte
da manhã, eu já estava pronto para ir à escola, mas meu irmão sequer havia
saído de seu quarto. Sempre nos aprontávamos ao mesmo tempo, ao passo que
aquela ausência dele começou a me preocupar um pouco. Meus pais, pelo
contrário, não levaram tão a sério, certamente ligando o fato a mais um
capricho de criança.
Minha mãe, terminando de
arrumar a cozinha enquanto meu pai escovava os dentes, estava prestes a ir chama-lo
no quarto, depois de ter gritado seu nome algumas vezes, quando ele apareceu à
soleira da porta da cozinha, vestido de forma um tanto quanto mais relaxada do
que o habitual, com os cabelos bagunçados e uma olheira tímida, porém visível.
Se fosse um adulto, diria facilmente que ele havia bebido mais do que o
habitual noite passada e enfrentava agora uma insistente ressaca.
Aquele estado de meu pequeno
irmão causou estranheza em minha mãe, mas não o suficiente para preocupa-la em
demasia, ainda sob a ideia de que era algo comum a uma criança. Eu, contudo,
conhecia o garoto de uma forma diferente, e imediatamente busquei nele novas
pistas acerca da sua situação. Ele nada me disse. Nem sequer ergueu a cabeça
para me olhar nos olhos. Seguiu, sorumbático, como que no piloto-automático, atrás
de nós enquanto saíamos de casa.
Durante a manhã inteira e, pela
maior parte da tarde, nas vezes em que vi meu irmão, encontrei-o neste mesmo
estado tão atípico e peculiar em comparação ao jeito com o qual ele sempre se
portou. Tentei, por algumas vezes, tomar coragem para questioná-lo sobre esta
mudança repentina, mas não foi preciso. No final da tarde, ele me perguntou
baixinho:
– Você não viu ele também, não
é?
– Quem?
– Deixa pra lá...
– Agora fala, mano...
Diante da relutância dele,
senti que o desabafo pessoal dele estava na ponta língua. Incentivei mais um
pouco.
– Vamos lá, cara, você sabe que
pode confiar em mim, pode me contar...
– O homem que foi me visitar
ontem. De novo.
– Que homem?
– Eu não sei quem ele é.
– O que ele fez?
– Não sei dizer.
– Como assim?
– Eu não sei!
– Tudo bem, calma – tratei de
acalmá-lo, pois percebi que aquela parte do assunto o incomodava de
sobremaneira e os ânimos dele começavam a efervescer. – Me diz, como ele é?
– Eu... não sei... alto.
– Só alto?
– É. Não sei mais...
– Por que, mano?
– Ele não tem rosto.
Empalideci e senti minha
garganta ficar imediatamente seca. Não soube o que dizer imediatamente e, no
momento em que ia tentar falar algo, minha mãe chegou. Resolvi deixar aquele
assunto para depois. Percebi que era algo muito delicado para ser tratado sem o
devido tato.
Naquela data, não tive mais um
momento a sós com meu irmão, principalmente depois da chegada do meu pai.
Resolvi conversar com ele, então, da maneira mais séria e compreensiva
possível, na tarde do dia seguinte.
Porém, o incidente daquela
mesma noite não permitiu a mais ninguém daquela casa ponderações mais suaves.
O relógio marcava quase duas
horas da manhã. Meu quarto ficava colado, parede com parede, com o dele. Meu
sono estava mais leve do que o normal naquela noite e perdi completamente a
vontade de dormir, ficando mais desperto do que nunca, quando ouvi, no cômodo
ao lado, que era o quarto do meu irmão, gemidos baixinhos e sussurros chorosos,
seguidos de passos arrastados e tímidos. Escutei o ruído leve de um móvel sendo
lentamente arrastado pelo piso, como que para que ninguém mais ouvisse.
Sentei na cama, apreensivo e
preocupado, e encostei o ouvido na parede. Após uns três minutos de silêncio
velado, pude ouvir um choro baixinho e contínuo, certamente pertencente ao meu
irmão, seguido de uma súplica desesperada:
– Por favor, não...
Não me aguentei mais. Me
levantei de um pulo e me encaminhei, cauteloso, ao quarto do meu irmão, que
estava com a porta fechada. Me atrevi a abri-la.
No momento em que escancarei a
porta, senti uma baforada quente batendo em meu peito, como se algo que
estivesse ali fugisse em debandada com minha presença. O quarto era um breu,
escuridão quase absoluta, com a exceção de meu irmão que, sentado no chão bem
no meio do quarto, tinha a cabeça abaixada até quase o nível do piso e era
iluminado pelo abajur de sua mesa, transportado para perto dele. Não pude notar
mais nada no cômodo em si, mas sabia que quase toda a mobília estava arrastada
e em lugar diferente do habitual.
E o cheiro. O quarto, além de
um ar pesado e carregado, quase palpável, carregava um estranho e exótico
cheiro impregnado de mofo ou algo úmido, como se um enorme cão molhado tivesse
se esfregado em todos os cantos dali.
Todas estas constatações eu
tirei em milésimos de segundos após abrir a porta, pois não tive mais tempo
para nada além disso. Ao escancarar a porta, de certa forma eu abri também e
boca de meu irmão que, se até aquele momento tentava manter um silêncio
amedrontado, gritou de terror e angústia quando entrei no recinto, um grito que
me gelou a alma e deixou minhas pernas bambas, a ponto de quase me derrubarem
ao chão.
Quase que no mesmo instante,
pude escutar meus pais se movimentando, repentinamente acordados no quarto do
outro lado do corredor.
Antes que eles chegassem, corri
para meu irmão, que tremia de maneira frenética. Segurei seus ombros, senti sua
pele que fervia em febre e suava de calor angustiante, ergui sua cabeça e me
deparei com seus olhos. O rosto dele estava todo branco, mas os olhos me
chocaram de uma maneira que, até hoje, carrego de forma negativa e traumática
comigo. Naqueles olhos eu vi a pura face do medo. Aqueles olhos que sempre
foram de um puro e claro verde, naquele instante de terror estavam negros como
a mais escura e tenebrosa noite, frios como o mais profundo dos oceanos e
opacos, sem vida, ocos. Uma onda de terror tomou conta de mim ao perceber que
toda a felicidade infantil daqueles olhos fora apagada, tomada, tornada negra e
sem vida.
Não precisei que ele dissesse o
que disse em seguida, segundos antes de meus pais chegarem, para que eu
soubesse daquilo. Aqueles olhos já me afirmavam e provavam de forma
inquestionável aquele fato. Mas, mesmo assim, ele disse, com sua vozinha fraca
e assustada:
– Ele está aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário