quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O homem sem rosto

Na época, meu irmão tinha seis anos. Era mais uma criança feliz, saudável e esperta, que frequentava a escolinha e não tinha problemas de convivência com nenhum de seus colegas, professores ou familiares. Estava todo tempo a matraquear pelos cantos, correndo e brincando como se não houvesse amanhã. Seus olhos grandes e de um verde claro expressavam de sobremaneira todo seu alegre e constante estado de espírito.
Apesar de toda a intensidade física das correrias e brincadeiras de meu irmão mais novo, o bairro em que morávamos, no centro da capital paranaense, não permitia que a criança saísse às ruas de modo que nossa mãe ficasse sossegada, já que o local era, essencialmente, urbano e muito movimentado. Residíamos em um apartamento alto, bem no meio de uma grande avenida que contava com diversas lojas e estabelecimentos. A frequente e, por vezes, perigosa rotina urbana daquele local trancafiava a mim e ao meu irmão em casa sozinhos, todas as tardes, depois da escola.
Certa tarde de inverno, o apartamento todo fechado, meu irmão, em meio a uma partida de videogame, me confidenciou algo que, pela sua fala, soava como um forçoso momento em que se procura fazer o outro acreditar que aquilo que se está dizendo trata-se da coisa mais normal do mundo:
– Ontem à noite ele foi lá me ver.
Naquele instante, não dei muita bola, pois estávamos prestes a iniciar uma nova partida. Simplesmente concordei com um “a-ham”, tomando por certo de que se tratava de nosso pai.
Alguns dias depois, pela parte da manhã, eu já estava pronto para ir à escola, mas meu irmão sequer havia saído de seu quarto. Sempre nos aprontávamos ao mesmo tempo, ao passo que aquela ausência dele começou a me preocupar um pouco. Meus pais, pelo contrário, não levaram tão a sério, certamente ligando o fato a mais um capricho de criança.
Minha mãe, terminando de arrumar a cozinha enquanto meu pai escovava os dentes, estava prestes a ir chama-lo no quarto, depois de ter gritado seu nome algumas vezes, quando ele apareceu à soleira da porta da cozinha, vestido de forma um tanto quanto mais relaxada do que o habitual, com os cabelos bagunçados e uma olheira tímida, porém visível. Se fosse um adulto, diria facilmente que ele havia bebido mais do que o habitual noite passada e enfrentava agora uma insistente ressaca.
Aquele estado de meu pequeno irmão causou estranheza em minha mãe, mas não o suficiente para preocupa-la em demasia, ainda sob a ideia de que era algo comum a uma criança. Eu, contudo, conhecia o garoto de uma forma diferente, e imediatamente busquei nele novas pistas acerca da sua situação. Ele nada me disse. Nem sequer ergueu a cabeça para me olhar nos olhos. Seguiu, sorumbático, como que no piloto-automático, atrás de nós enquanto saíamos de casa.
Durante a manhã inteira e, pela maior parte da tarde, nas vezes em que vi meu irmão, encontrei-o neste mesmo estado tão atípico e peculiar em comparação ao jeito com o qual ele sempre se portou. Tentei, por algumas vezes, tomar coragem para questioná-lo sobre esta mudança repentina, mas não foi preciso. No final da tarde, ele me perguntou baixinho:
– Você não viu ele também, não é?
– Quem?
– Deixa pra lá...
– Agora fala, mano...
Diante da relutância dele, senti que o desabafo pessoal dele estava na ponta língua. Incentivei mais um pouco.
– Vamos lá, cara, você sabe que pode confiar em mim, pode me contar...
– O homem que foi me visitar ontem. De novo.
– Que homem?
– Eu não sei quem ele é.
– O que ele fez?
– Não sei dizer.
– Como assim?
– Eu não sei!
– Tudo bem, calma – tratei de acalmá-lo, pois percebi que aquela parte do assunto o incomodava de sobremaneira e os ânimos dele começavam a efervescer. – Me diz, como ele é?
– Eu... não sei... alto.
– Só alto?
– É. Não sei mais...
– Por que, mano?
– Ele não tem rosto.
Empalideci e senti minha garganta ficar imediatamente seca. Não soube o que dizer imediatamente e, no momento em que ia tentar falar algo, minha mãe chegou. Resolvi deixar aquele assunto para depois. Percebi que era algo muito delicado para ser tratado sem o devido tato.
Naquela data, não tive mais um momento a sós com meu irmão, principalmente depois da chegada do meu pai. Resolvi conversar com ele, então, da maneira mais séria e compreensiva possível, na tarde do dia seguinte.
Porém, o incidente daquela mesma noite não permitiu a mais ninguém daquela casa ponderações mais suaves.
O relógio marcava quase duas horas da manhã. Meu quarto ficava colado, parede com parede, com o dele. Meu sono estava mais leve do que o normal naquela noite e perdi completamente a vontade de dormir, ficando mais desperto do que nunca, quando ouvi, no cômodo ao lado, que era o quarto do meu irmão, gemidos baixinhos e sussurros chorosos, seguidos de passos arrastados e tímidos. Escutei o ruído leve de um móvel sendo lentamente arrastado pelo piso, como que para que ninguém mais ouvisse.
Sentei na cama, apreensivo e preocupado, e encostei o ouvido na parede. Após uns três minutos de silêncio velado, pude ouvir um choro baixinho e contínuo, certamente pertencente ao meu irmão, seguido de uma súplica desesperada:
Por favor, não...
Não me aguentei mais. Me levantei de um pulo e me encaminhei, cauteloso, ao quarto do meu irmão, que estava com a porta fechada. Me atrevi a abri-la.
No momento em que escancarei a porta, senti uma baforada quente batendo em meu peito, como se algo que estivesse ali fugisse em debandada com minha presença. O quarto era um breu, escuridão quase absoluta, com a exceção de meu irmão que, sentado no chão bem no meio do quarto, tinha a cabeça abaixada até quase o nível do piso e era iluminado pelo abajur de sua mesa, transportado para perto dele. Não pude notar mais nada no cômodo em si, mas sabia que quase toda a mobília estava arrastada e em lugar diferente do habitual.
E o cheiro. O quarto, além de um ar pesado e carregado, quase palpável, carregava um estranho e exótico cheiro impregnado de mofo ou algo úmido, como se um enorme cão molhado tivesse se esfregado em todos os cantos dali.
Todas estas constatações eu tirei em milésimos de segundos após abrir a porta, pois não tive mais tempo para nada além disso. Ao escancarar a porta, de certa forma eu abri também e boca de meu irmão que, se até aquele momento tentava manter um silêncio amedrontado, gritou de terror e angústia quando entrei no recinto, um grito que me gelou a alma e deixou minhas pernas bambas, a ponto de quase me derrubarem ao chão.
Quase que no mesmo instante, pude escutar meus pais se movimentando, repentinamente acordados no quarto do outro lado do corredor.
Antes que eles chegassem, corri para meu irmão, que tremia de maneira frenética. Segurei seus ombros, senti sua pele que fervia em febre e suava de calor angustiante, ergui sua cabeça e me deparei com seus olhos. O rosto dele estava todo branco, mas os olhos me chocaram de uma maneira que, até hoje, carrego de forma negativa e traumática comigo. Naqueles olhos eu vi a pura face do medo. Aqueles olhos que sempre foram de um puro e claro verde, naquele instante de terror estavam negros como a mais escura e tenebrosa noite, frios como o mais profundo dos oceanos e opacos, sem vida, ocos. Uma onda de terror tomou conta de mim ao perceber que toda a felicidade infantil daqueles olhos fora apagada, tomada, tornada negra e sem vida.
Não precisei que ele dissesse o que disse em seguida, segundos antes de meus pais chegarem, para que eu soubesse daquilo. Aqueles olhos já me afirmavam e provavam de forma inquestionável aquele fato. Mas, mesmo assim, ele disse, com sua vozinha fraca e assustada:
– Ele está aqui.

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