quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Círculo

– Escuta aqui, seu puto – cuspiu enraivecido enquanto se levantava – perdeu amor a essa sua vidinha de merda?
Qualquer um poderia farejar uma briga feia a caminho. A galope, em urgente iminência, como a decolagem certa de um avião que se encaminha ligeiro ao longo da pista de lançamento.
Eu não fiz, exatamente, por mal. Na verdade tratou-se muito mais de um impulso impensado, irracional e completamente alheio a tudo que eu já vivenciara do que um movimento ponderado e calculado. Ele simplesmente estava lá, eu há uns cinco metros, e aquilo aconteceu.
O homem era mais alto do que eu. Uns dez centímetros, pelo menos, e aparentava robustez de músculos, lembrando muito um grande barril de carvalho.
Veio bufando e quase babando, com olhos de fúria e embriaguez, para cima de mim, de punhos cerrados e peito aberto, como um verdadeiro galo de briga. Não tive escolha.
– Seu bosta – eu disse uma última vez, antes do início das vias de fato, o que agravou ainda mais o olhar demoníaco e alucinado do outro homem. A cabeça dele ainda estava molhada no ponto que foi meu alvo para dar o pontapé a esta verdadeira mistura de atos violentos.
Os outros fregueses e o barman nada faziam. Somente olhavam, com olhos petrificados, o desenrolar desta cena que prometia uma verdadeira carnificina e, a julgar pelos olhares que me lançavam, tomavam-me como o elo mais fraco da pendenga.
Desceu o punho dele, forte, decidido e rápido como um trovão. Felizmente, eu havia previsto aquela investida, de forma que desviei meio trôpego daquele soco.
Não consegui, contudo, antever o movimento do outro braço, que me acertou em cheio no meio do queixo, fazendo com que eu claramente sentisse que algo provavelmente foi pelo menos trincado dentro de mim depois daquele golpe.
– Vishh – eu ouvia o baixo gemido de espanto dos outros clientes, enquanto aqueles olhos enraivecidos do meu oponente me fuzilavam e destilavam para cima de mim o mais profundo ódio, de um homem considerado de pavio curto que havia ido ao bar beber e foi surpreendido com algo completamente inusitado.
Acontece que ele tinha um vício. Uma mania que, desde o primeiro momento que o vi fazendo, me irritou profunda e inexplicavelmente. Ele ficava tamborilando aqueles dedos grossos como salsichas imundas no balcão e na caneca de cerveja sem parar, como se fosse maestro de sua orquestra imaginária. Mas não era só isso pois, para mim, aquele batuque misturado à total expressão arrogante em seu semblante, se tornou a combinação mais irritante de todo o universo.
E ele não parava. Batucava, batia os dedos grossos com força, fazendo barulho, incomodando a todos ao seu redor.
Tump tump tump.
Para ser sincero, eu não pude averiguar se realmente os outros estavam prestando atenção àquela hedionda mania do homem, tamanha era minha indignação. Minha bile já estava amarga e eu principiava a ter alucinações de raiva. Ele simplesmente não parava. Foram dez minutos ou talvez duas horas, não sei dizer ao certo, pois minha noção de tempo restou completamente afetada. Tudo o que sei é que em meu particular, em meu intelecto, eu estava sendo despedaçado. Talvez o problema fosse comigo, ou realmente com ele, mas era certo de que havia um problema enorme.
Tump tump.
Não me contive.
Tump tump.
Em um ato da mais pura insensatez, atirei na cabeça dele o resto de cerveja que ainda tinha em meu copo.
Claro que aquilo fez parar o batuque que me enlouquecia inexplicavelmente. Mas, em contrapartida, fez com que em meu semblante fosse pintada uma gigante marca vermelha para aquele verdadeiro touro ensandecido.
Mais um golpe, maiores dores.
E então, aquilo que depois me pareceu a coisa mais óbvia do mundo, surgiu em minha mente: se eu causei aquilo e estou apanhando feito um condenado, preciso ao menos tentar reagir. Tentar.
Foi o que fiz.
Não saberia nunca explicar como consegui acertar um soco naquela face carrancuda. Talvez o teor alcoólico dele estava mais elevado do que o meu, de forma que seus reflexos já não eram tão primorosos.
A briga, então, seguiu numa tresloucada troca de murros, pontapés, empurrões e uma quase caída ao chão pelo que, me pareceu, pouco tempo.
Foi só quando alguém finalmente nos separou que pude ver que eu nada via que não fosse tingido pelo sangue vivo que escorria de meu rosto. Eu devia estar uma desolação só. Obviamente, o mastodonte com o qual me engalfinhei não apresentava tantos danos, mas tinha lá suas dores e feridas.
Expulsaram-nos do bar. Nunca mais vi aquele homem, que virou sombras quando eu, já andando, olhei para trás para me certificar de que não era seguido para um eventual encerramento do embate.
Atravessei a rua, encontrei outro bar. Ansiava por mais uma gelada, para acalmar os ânimos.
Quando entrei, senti a maioria dos olhos se desviarem rapidamente em minha direção, e tive a certeza, apesar de não retribuir nenhum, de que todos me olhavam curiosos e investigativos, como filhotes de cachorro diante de um objeto desconhecido a ser explorado. Imaginei qual seria a visão que tinham. Um magrelo surrado, espancado, ensanguentado e praticamente nocauteado que se sentou ao balcão.
– Cerveja, por favor – balbuciei enquanto me ajeitava no banco.
Mal tive tempo de me sentar, pedir a bebida e começar a me acalmar e percebi um ruído que me era irritantemente conhecido.
Tump tump tump.
Não sei o porquê, mas dessa vez a desgraça estava ainda maior. Sentia meus tímpanos vibrando ao som daqueles dedos acompanhados agora pelas mãos e também pés malditos, que tamborilavam de forma ainda mais irritante.
Olhei atentamente o rosto do responsável. Não, não era o mesmo homem. Contudo, o ruído animalesco e inexplicavelmente irritante, a mim – pois ninguém mais dava mostras de descontentamento, percebi – soava até provocador.
Tump tump tump tump tump paf tump paf tump pof pof tump.
A cerveja chegou.
Se eu tivesse um espelho naquele momento, poderia ver meu olho esquerdo piscando desenfreadamente, num impulso automático causado por aquele batuque que me arranhava a alma.
Não tive escolha. O impulso voltou. E dessa vez iria a caneca cheia de cerveja.
Tump tump tump.
Eu não ouvia mais nada. Não via mais nada. Aquele barulho tinha que parar.
A noite seria longa.

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