quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Canudo gigante no céu azul

Rodava com o carro exibindo o braço esquerdo pendurado na janela aberta aos raspões da brisa suave, mas pesada que se chocava com aquele corpo em movimento. O sol da tarde já havia se escondido atrás dos edifícios mais altos ao redor, de forma que a luz forte do astro que habitualmente obriga a todos os motoristas a abaixar o quebra-sol e mesmo assim fazer fendas com os olhos para enxergar se despedira minutos atrás. Apesar do trânsito leve, a avenida estava tranquila para se movimentar.
No rádio, Springsteen cantava “You’re Missing”. O carro ia à cerca de 50 por hora, sem pressa. Ele sentia-se em um momento contemplativo, só que não sabia ainda ao certo do quê.
Olhou para fora através de seus óculos de sol de lentes verde e observou as pessoas, algumas poucas correndo para manter a forma, a maioria com pressa para chegar a algum lugar e algumas outras cansadas depois de mais um dia de trabalho. Entendia-as.
“Everything is everything...” ouvia-se no interior do seu carro.
Ainda na avenida, passou pelo acesso à esquerda que o conduziria a uma rua paralela na qual estava o seu destino daquela viagem. Simplesmente passou reto pela entrada na avenida, sem olhar para trás ou maiores indagações acerca do por quê daquilo. Queria dar mais uma volta, escutar a música inteira.
“Yo-ou’re missing...”
Avançou mais um pouco a parou no sinal vermelho.
Foi aí então que, pela primeira vez naquele final de tarde de janeiro, em meio à algazarra e miscelânea de pessoas, objetos, veículos, coisas e espaços diferentes que uma cidade proporciona, ele ergueu seus olhos rumo ao céu.
E, ali no céu, ele encontrou o objeto de sua antevista contemplação. O céu não estava pintado com diversos tons alaranjados, vermelhos e amarelos que normalmente despertam o olhar admirado de transeuntes mais relaxados com a rotina. O manto que cobria a cidade estava simplesmente azul com nuvens brancas. Simples assim. O que chamou a atenção dele, não obstante, foi justamente uma destas nuvens.
Ela ia ao lado de outra nuvem, ambas tão brancas quanto o mais puro algodão ou o mais fresco e imaculado floco de neve. Eram nuvens completamente alvas e grandes, que avançavam lentamente pelo céu azul claro.
Lentamente, na verdade, era uma questão de perspectiva. Talvez, lá em cima, a velocidade que elas assumiam fosse muito maior do que os olhos dele à distância permitiam medir.
E ia por lá o belo formato de nuvem que lhe chamara a atenção. Despertara-lhe contemplação pela pureza de sua brancura e pelo seu formato singular. Pois não se tratava de uma nuvem simples, e sim de um verdadeiro tubo de ar envolvo por partículas brancas, como um canudo gigante em forma de nuvem. Era algo um tanto quanto cilíndrico e simples, que viajava a muitos quilômetros de distância daqueles olhos dele. Mas era belo.
Neste minuto e pouco que durava o sinal vermelho que o forçara a parar, ele se pegou pensando na infinitude dos sistemas, das galáxias, do universo. Surpreendeu-se com aquela constatação já velha conhecida do homem, oriunda dos tempos mais antigos onde os mais antigos de nossa espécie erguiam as cabeças e os olhos estupefatos para os céus noturnos a fim de admirar a imensidão de estrelas em sua abundância deslumbrante. Éramos, todos, menos do que poeira espacial na infinitude do universo.
Entretanto, este pensamento oriundo da admiração de algo muito maior e muito distante, ali, sereno e imperturbável, não o abalou nem o deprimiu. Pelo contrário. Constatou que, apesar de sua pequeneza diante de tudo aquilo, ele próprio fazia parte de todo esta vastidão infinita. Ora, se estava ele lá, olhando, admirando aquela paisagem natural que desfilava para seus olhos agora atentos, e ele, admirador, tinha a ciência e discernimento suficientes para se deixar deleitar com aquilo, aquilo se tornara algo para ele, de forma que ele passou a reconhecer a beleza daquele formato de nuvens, tal como para com o imenso conglomerado de partículas que formava aquela paisagem natural, alguém passou a se importar – sendo o admirador muito menor em tamanho do que o objeto admirado; mas a questão já não passava mais de um viés de perspectiva. Imaginou a progressão que aquilo poderia tomar e se sentiu parte integrante do universo, e não algo descartável dele. Sentiu-se, repentinamente, confortado com a ideia. Sua vida, apesar de dimensões ínfimas diante do universo, não perdia sua beleza singular e muito menos a capacidade de se admirar a beleza. E aquilo era belo. Aquele canudo gigante de nuvens distantes.
Perdido nestes pensamentos, mal reparou no fato de que o turbilhão, o tubo de nuvem que pescara sua admiração e jogara-o em intensas reflexões mentais, havia começado a notadamente se dissipar. Em breve, todas aquelas partículas de nuvem já não estariam mais juntadas, a corrente de ar que provavelmente só passava pelo meio do canudo gigante já estaria passando por toda a sua forma, desmanchando-o, e a imagem não existiria mais.
Contudo, ao menos ele pôde admirar. A beleza não lhe escapara e não escaparia mais.
Um pouco mais em paz, voltou seus olhos para seus arredores urbanísticos, ao caos e excentricidades da cidade. Aquela selva de pedra, de loucos e de multidões que contrastava, e muito, com a beleza natural que acabara de contemplar céu acima.
“Everything is everything.”
O sinal abriu.
Engatou a primeira.


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