quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Cotidiano do sonho esquecido

Acordou chutando o lençol, testa suada, olhando ao redor com cautela em manifesto momento de inquietação, com perfeita ciência de que a desorientação tomara posse de suas faculdades mentais. Não emitiu som algum pela boca.
Praguejando baixinho ao se apoiar na borda da cama para acomodar de maneira mais completa sua traseira, foi capaz de ver passar um breve filme em sua mente acerca daquele momento, quase como um daqueles déjà vu. Quando moleque, era também arremessado de forma violenta para fora de um sonho qualquer, caindo diretamente nas garras daquela vadia da realidade. Porém, nestes outros tempos se tratavam somente daqueles sonhos idiotas onde se tinha a infeliz da sensação de estar caindo de um edifício de infinitos andares. Ultimamente, desconhecia o motivo, mas estava familiarizado com o resultado.
Foi propositalmente incapaz de notar a desordem absoluta do quarto ao se encaminhar ao banheiro. Seus pés não encontraram nenhuma das garrafas vazias esquecidas no chão e, por isso, ele se manteve ativamente satisfeito neste jogo de auto-ilusão.

– Você perdeu de novo, seu imbecil sem-vergonha – murmurou para seu reflexo mal-humorado no espelho. – Deixou escapar mais uma ideia que seria daquelas das boas...
Deu uma mijada enquanto pensava um pouco mais naquilo. Era um sonho bom, sua cabeça insistia em martelar, mas dele só se recordava disso: era um daqueles sonhos bons, que dariam uma história minimamente decente.
Escovou os dentes, tomou um banho e voltou para a cama. Roncou mais um pouco e, tempos depois, acordou mais uma vez com o chamado infernal do próprio estômago exigindo uma refeição decente. Ignorou, pois a preguiça foi maior do que a vontade e um belo sábado de sol daqueles não poderia ser desperdiçado fora da cama.
O motivo de tamanho desgosto se encontrava na própria concepção de hobby que o pobre diabo assumira. O infeliz gostava de teclar uma ou outra palavra, sem, contudo, se autoproclamar escritor; possuía pretensões mais humildes naquele momento. Contudo, nada fazia aplacar nele a inconformidade por ter perdido mais uma ideia, que já era algo muito escasso para sua criatividade.
“Seu miserável”, havia dito para si mesmo ainda durante o sono, como um narrador explicando o be-a-bá da história que se desenrolava para o interlocutor desatento, “muito bem! Isso aqui pode dar uma baita história. Manda bala quando acordar, porque coisa assim não acontece de novo não...”
Seus olhos se abrindo revelaram mais uma interrupção neste looping de reflexões. Chega. Levantou-se bocejando e foi preparar um café. Assuntos secundários e idiotas rondavam sua mente, tais como a conta de luz que estava para vencer, as novas contratações do seu time de futebol, aquela receita que levava bacon que vira há umas duas semanas mas não tentou reproduzir ainda, os politicamente corretos, incorretos, o que deixava de achar disso, o lixo que não iria se colocar na rua sozinho, a gripe suína que ninguém comentava mais.
Nada, porém, o fazia ter um lampejo de lembrança sobre aquele tal sonho bacana. Estava prestes a desistir quando, ao jogar o pó de café fora, teve a atenção presa naquele lixo que já se amontoava em uma pilha de resíduos a jogar fora. Resolveu, com isso, que o sábado não seria de todo em vão.
16 andares abaixo, saco na lixeira, prestes a subir com o elevador todos esses andares e se isolar em seu canto escuro, em seu forte de solidão, quando o sujeitinho esquisito do 13º pediu para segurar a porta de uma maneira que ele não teve como fingir que não viu – pois a porta nem havia começado a se fechar, afinal.
Silêncio típico de elevador, que ele preferia ter mantido, mas não foi capaz de evitar a conversa de tom ‘obrigacional’ mais esquisita que já tivera na vida.
– E esses elevadores, hein rapaz – forçou o cara do 13º.
– É. Pois é.
– Que elevadores, hein. Que coisa.
– Pois é. Sobem. Descem. Sobem.
– Isso, isso, isso mesmo – uma breve luz de concordância e alívio se afigurou nas feições do sujeito. – Sobem e descem!
– Uhum.
– Bem, falou. Até mais.
Salvo pelo 13º andar.
Subiu os 3 andares restantes sozinho e pensando no por quê daquele ser glorioso puxar um assunto desses. Compreensível falar do tempo, como qualquer outro indivíduo desconfortável com o silêncio. Falar da Copa, daquele filme de bosta que estreou recentemente, da comida servida no refeitório da faculdade. Mas, inacreditavelmente, o assunto de elevador foi, dessa vez, os próprios elevadores de uma forma geral.
– Ensaio elevadorístico – disse em voz alta enquanto dava uma volta na fechadura da sua porta de entrada.
O resto daquele dia arrastado acabou voando como uma pena no vendaval, constatou ele ao checar o relógio.
Com um copo meio cheio de uma dose de alguma coisa qualquer, sentou-se e ficou encarando a tela em branco à sua frente. Resoluto, estabeleceu uma meta de não se deixar mais confiar na própria mente. Se preciso, manteria um bloco de notas no espaço ao seu lado na cama, já que criado-mudo ele não tinha. Junto, uma caneta, claro, alertou-se.
E, enquanto isso não acontecia – pois se tratava de mais um daqueles planos ‘amanhã-eu-faço’ que acabam não tendo tempo determinado para serem colocados em prática –, começou a teclar coisa qualquer para escrever, naquela ocasião, sobre a terrível experiência de ter no reino dos sonhos uma ideia das boas só para vê-la depois escapar de seu domínio, como grãos de areia sendo espalhados por dedos se abrindo e caindo numa imensidão desértica de outros grãos.
Tomou um gole. Aquele era um dia a menos em sua vivência e, afinal, um dia a mais a ser ignorado no futuro.

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