domingo, 31 de maio de 2015

Visita no turno da noite

– Raimundão! Ê, Raimundão! – chamou o balconista pela janelinha de dentro da conveniência. Raimundo acabara de recolocar a mangueira em seu devido lugar. – O Branquinho quer falar com você lá na sala dele...
Agradecendo com um aceno de cabeça, Raimundo começou a se encaminhar lentamente para os fundos do estabelecimento, onde ficava um pequeno complexo acinzentado contendo, dentre espaços destinados aos próprios funcionários, um gabinete dentro do qual o gerente do posto de gasolina se aninhava e vivia lançando comandos administrativos bestas aos subordinados pelo telefone.
Humildemente, o frentista bateu de leve na porta do chefe e colocou a cabeça para dentro da sala.
– Oh, olá, Raimundo, gostaria de dar uma palavrinha contigo – o gerente, apelidado sarcástica e secretamente de Branquinho pelos empregados do posto, se pavoneava com diversos dos seus itens excêntricos de coleção espalhados pela mesa. – Pode se sentar, homem, não tenha medo – emendou o gerente. O homem não era má gente, afinal.
Coçando a cabeça, já aguardando pelo pior, Raimundo se sentou na dura poltrona cor de carne dos anos 80 enquanto revezava seu olhar de Branquinho para anéis de lata jogados pela mesa e vice-versa.
Óbvio, o aguardar do simples frentista era por uma demissão, ou algo em torno disso. Nada muito além dessa possibilidade, já que não nutria expectativas quanto a eventuais promoções. Seus colegas trabalhavam tão bem ou, alguns diriam, melhor do que o próprio Raimundo.
– O senhor sabe por que lhe chamei, senhor Raimundo?
– Sei não sinhô, seu Br...uno.
– Acho que você ficou sabendo do João.
– O Jóinha das Onze?
– Quê?
– Ah, sinhô, é como a rapaziada chama o rapaz da noite – havia alguns meses, o figurão dono do posto havia decidido que era hora de manter o estabelecimento aberto por 24 horas. Para Raimundo, isso não mudou nada, uma vez que foi contratado novo funcionário para cobrir o horário adicional, o tal do Jóinha das Onze. Raimundo bem sabia que a origem desse apelido era que, apesar de ter de ficar desperto, João mal aguentava chegar às onze da noite: antes mesmo das 23 horas, já podia ser visto encostado num canto, em sono pesado, com, segundo disseram, ambas as mãos encostadas na barriga fazendo sinal de “jóinha”. Evidente sinal de que o turno da noite não era lá muito badalado.
– Oh, sim, isso, senhor Raimundo, o funcionário do turno da noite, esse mesmo a que me referia.
– Sei sim sinhô.
– Mas o senhor sabe o que houve?
– Com o Jóin... digo, seu João?
– Isso mesmo.
– Sei não sinhô.
– O senhor João, do turno noturno – iniciou o gerente, numa pose estufada, verdadeiramente lembrando muito a um pavão abrindo lentamente as penas para impressionar alguém, enquanto brincava com o dedo com dois aneizinhos de lata – sofreu um grave acidente.
Raimundo, sem saber como reagir, ficou ali só olhando fixamente os olhos de seu superior, que tentava passar uma impressão de onisciência absoluta.
– Ele estava dirigindo na estrada, por uma rodovia qualquer aí – continuou o gerente –, quando o carro dele foi atingido pelo pedaço de metal de um aquecedor, aparentemente caído dos céus.
Raimundo permaneceu silente, apenas concordando com a cabeça e assoviando de leve quando o seu superior terminou sua frase.
– João está bem, senhor Raimundo. Foi levado ao hospital, está internado, mas seu estado é estável. Bateu a cabeça no volante e está sob observação.
 – Ah, que bom então, né seu Brun...
– E eu gostaria de saber, senhor Raimundo – continuou apressadamente o gerente – se o senhor poderia, amanhã, cobrir o turno noturno do João.
Aquilo era, para Raimundo, uma verdadeira surpresa.
Ora, para um homem que foi chamado somente pela segunda ou terceira vez à sala do seu superior em quase sete anos de trabalho, o pensamento de que o pior estava para acontecer era inevitável.
Mas aquilo, afinal, era aceitável. Interessante, até, pois Raimundo se lembrou naquela mesma hora de que na noite seguinte iria receber em casa, a convite de sua esposa, alguns parentes dela que o próprio Raimundo não ia muito com a cara.
Depois de alguns segundos de reflexão, a ideia até lhe pareceu boa. O sossego que o turno noturno aparentemente trazia poderia ser benéfico ao exausto Raimundo, observando a possibilidade em seu lado positivo.
Erguendo novamente os olhos, o frentista viu que Branquinho olhava para ele com impaciência, prestes a chamar sua atenção por uma resposta. Assim, sem demorar seu olhar em algum outro bibelô daquele gabinete excêntrico, Raimundo balançou a cabeça em sinal afirmativo, confirmando que poderia cobrir o turno do acidentado João na noite seguinte.
– Ótimo, senhor Raimundo. Ficamos assim combinados, então! Esteja aqui amanhã às 21 horas para começar então – disparou o gerente ao primeiro sinal de concordância de seu subordinado.
Satisfeito por não ter perdido o emprego, Raimundo começou a se levantar, quando o chefe ainda acrescentou:
– Ah, e não se preocupe, os adicionais noturnos e horas extras serão devidamente acrescentados ao seu numerário ao final do mês – disse o homem enquanto exibia um sorriso amarelado pelo tabaco que não inspirava lá muita confiança.
Raimundo deixou a sala, já preparando o discurso que teria de expor à mulher para explicar, com tristeza simulada, o porquê da sua ausência no glorioso jantar da noite seguinte.

***

Na noite seguinte, às 21:03, lá estava Raimundo. Menos de cinco minutos depois de sua chegada ao posto, o homem já estava sozinho.
Atendeu à cada vez mais minguada freguesia que lá parava e, quando o relógio marcava 22:07, já não havia mais nenhum cliente para atender. Raimundo teve certeza, então, de que o apelido do Jóinha das Onze tinha lá seu fundo de verdade.
Com uma pontada de tédio, Raimundo perambulou pelo estabelecimento. Checou as bombas, o caixa, os freezers, a bomba de calibragem, os produtos na estante de óleos de motor, as plantinhas, os letreiros, os preços em exposição, as posições das mangueiras devidamente encaixadas todas em seus devidos lugares. Deu uma olhada em seu relógio: 22:24.
Sem conseguir imaginar algo melhor para fazer pelas próximas horas, avistou a cadeira ao lado do freezer de gelo, que provavelmente era onde Jóinha das Onze exercia sua árdua tarefa ociosa de todas as noites. Foi lá que Raimundo se acomodou e constatou que, sim, aquela cadeira era estranhamente aconchegante e confortável.
Não olhou mais o relógio.
Observava a imensidão escura que rodeava a área iluminada e vazia do posto de gasolina. O frentista constatou, de forma indubitável, que a ideia de deixar o local aberto 24 horas era na verdade uma baita baboseira. Não havia ninguém lá para atender, e Raimundo não conseguia imaginar o quanto um ou outro cliente que pudesse aparecer naquele período iria compensar os gastos que o figurão dono do posto teria em prolongar o horário de abertura do posto.
Ainda mais naquela cidade.
Afinal, quem iria, no meio da madrugada, querer abastecer seu carro na pacata cidade de Varginha? O estado de Minas Gerais tinha outras cidades maiores que, talvez, compensariam o investimento de deixar um estabelecimento aberto 24 horas, mas Raimundo visualizava que ali, não.
Bem, cedo ou tarde o figurão iria notar isso.
Raimundo começou a imaginar, ainda encarando a imensidão escura da rua que passava na frente do posto, o quão sortudo era por ter obtido uma desculpa perfeitamente razoável para se ausentar de casa justamente naquela data.
Uma satisfeita risada mental foi a última coisa que Raimundo se lembrava.
O frentista apagou, sentado na confortável cadeira do Jóinha das Onze.
Depois de sabe-se lá quanto tempo, o homem foi despertando devagar. A cabeça estava meio tombada, e Raimundo observou que suas mãos, entrelaçadas, formaram naturalmente dois sinais de jóinha. Quase rindo, pretendia se levantar para lavar o rosto, quando avistou, ao longe, uma figura se aproximando no meio da rua, já não banhada completamente pela escuridão da noite para passar despercebida.
O instinto inicial de Raimundo foi se levantar, mas pensou melhor a questão. Afinal, estava em posição de soneca e, se fosse avistado daquela maneira, provavelmente o estranho não iria lhe fazer mal algum. O frentista não sabia quem se aproximava, mas a julgar pelo vulto, era uma figura alta e esquisita. Sabe-se lá se estaria armado, e Raimundo decidiu que não estava disposto a arriscar sua vida para proteger o patrimônio de seu chefe imprudente.
A figura continuou a avançar. Parecia-se que estava mancando, a julgar pela dificuldade com a qual passava a perna esquerda adiante no movimento da caminhada. Raimundo ficou quietinho.
O vulto, enfim, foi banhado por um pouco mais de luz, ao passo que foi possível para o frentista ver, com os olhos semicerrados e o queixo quase encostado no peito, numa perfeita simulação de funcionário dorminhoco, que era um sujeito realmente peculiar.
Raimundo não conseguiu diferir exatamente qual era a roupa que o visitante usava, mas pôde ver que sua pele era de um bege-mostarda extremamente escuro, quase beirando um marrom claro. Os olhos pareciam grandes e brilhavam num tom que Raimundo preferiu ignorar. O sujeito, da mesma forma, ignorou quase que completamente a presença do frentista.
– Uahahhhhhhhhhhhh-BLopg – grunhiu o visitante. Raimundo começou a desconfiar, ligeiramente assustado, que o indivíduo havia ingerido cavalares doses de tóxicos.
Sendo ou não perigosa aquela figura, Raimundo decidiu por bem manter sua farsa e permaneceu quase inerte. A própria respiração não estava lá muito constante e quase parou por completo quando o sujeito se jogou no chão.
Eita nóis... – o frentista cochichou para si mesmo ao presenciar a cena.
Depois do que pareceram alguns minutos, quando Raimundo começou a achar que o visitante estava morto, o corpo caído começou a se mexer e a figura se arrastou até um dos baldes de água que ficava próximo da bomba de gasolina número 2.
Com as mãos nervosas, suando, agarrando uma à outra mais forte, o frentista viu quando aquela esquisitice toda pegou o balde com suas mãos de dedos inegavelmente longos e, num movimento desajeitado, despejou todo o conteúdo em sua cabeça.
O balde estava meio cheio e a água fria bateu naquela cabeça com um barulho que lembrava o cair de líquido em outro recipiente cheio daquele mesmo líquido. Raimundo achou estranho, pois foi como se o visitante tivesse vertido a água dentro de outro balde com água.
Com um gemido de alívio perfeitamente perceptível, como alguém que, muito apertado, finalmente se alivia, o visitante esquisito se levantou lentamente. Em pé, olhou à volta, e fez um breve passeio pela parte da frente do recinto.
Mesmo com os olhos parcialmente fechados, Raimundo não conseguiria tomara aquele sujeito como algum outro funcionário do posto fazendo uma ronda, por exemplo, pois a excentricidade daquele indivíduo saltava cada vez mais aos olhos.
Com sua cabeçorra desproporcional ao resto do corpo, o sujeito sacou de um bolso de trás de sua calça (ou de um compartimento traseiro do cinto), um objeto brilhante que Raimundo não pôde identificar.
Digitando coordenadas frenéticas, o visitante virava a cabeça para um lado e para o outro rapidamente, mapeando a rua. Quando terminou, guardou o aparelho no mesmo lugar de onde o tirara e, surpreendendo novamente Raimundo, soltou um senhor arroto e coçou a coxa esquerda com aqueles dedos esquisitos.
O frentista, imóvel, simulando o mais perfeito dos sonos, não conseguiu deixar de notar que aquele arroto não era um arroto qualquer. Parecia, na verdade, que aquele sujeito havia ingerido litros e mais litros de refrigerante segundos antes para arrotar daquela forma. Mais parecia um berrante chamando a boiada do que um arroto genuíno. E tudo o que Raimundo vira o visitante fazer, apesar de toda a loucura que poderia representar, não justificava aquele estrondo retumbante.
Sujeitinho estranho. Raimundo já não aguentava mais esperar e já planejava se levantar, jogar gasolina no infeliz e acionar seu isqueiro na cara daquele corno maluco enquanto corria escuridão adentro.
Depois de um momento, a ideia já não lhe pareceu muito inteligente. Mas, de qualquer forma, queria se levantar e assustar aquele cara da mesma forma que ele assustara o indefeso Raimundo.
Depois de mais um momento, a serenidade retornou ao intelecto do frentista e Raimundo, já mais conformado, permaneceu quieto e sua posição de cover do Jóinha das Onze.
Com os olhos entreabertos, um pouquinho mais ousado do que antes, viu que o sujeito esquisito começou a avançar para o meio da rua.
Quando alcançou o exato centro entre um meio-fio e outro, o sujeito parou. Apesar da parcial escuridão daquele ponto da rua, Raimundo viu que a figura acenava as mãos e colocava um pé na frente do outro sem, afinal, sair do lugar. Parecia estar...
Dançando.
E dançando uma música imaginária infantil.
Raimundo teve certeza de que, se estivesse perto o suficiente, poderia escutar aquela esquisitice toda cantando um jingle para animar festas de criança.
E, tão súbito quanto a chegada do sujeito, sua queda, seus movimentos no chão, a água na cabeça, o saque do aparelho brilhante, o arroto reverberante e o início dos movimentos desordenados, a dancinha parou.
Raimundo não soube mais o que esperar daquilo.
Enquanto observava a figura excêntrica parada no meio da rua, o sono voltou a assaltar o frentista, de forma que sua cabeça tombou um pouquinho mais. Raimundo não soube dizer se tornou a fechar os olhos momentos antes daquilo ou não, mas a figura ainda estava parada quando uma luz incrivelmente discreta – mas inexplicavelmente brilhante – projetou um círculo em volta do visitante.
Raimundo piscou novamente e, quando abriu mais uma vez os olhos, dessa vez por completo, a luz já havia sumido junto com o sujeito esquisito, dando lugar à habitual escuridão que tomava a rua àquela hora da noite, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
Boquiaberto, Raimundo se esticou na cadeira e olhou em volta. Não viu sinal algum da existência daquela figura esquisita que estivera ali até então e que, num piscar de olhos, sumira junto com uma luz igualmente esquisita.
Esticou um pouco mais o pescoço e viu o balde tombado ali no chão ainda úmido.
Voltou a apoiar as costas no encosto, ainda sem saber como explicar aquela cena toda que presenciara. Sentiu, porém, o sono retornar.
– Essa molecada de hoje em dia... – murmurou Raimundo, enquanto ajeitava a bunda no assento da cadeira e se entregava de vez ao sono.

Nenhum comentário:

Postar um comentário