– Raimundão! Ê, Raimundão! –
chamou o balconista pela janelinha de dentro da conveniência. Raimundo acabara
de recolocar a mangueira em seu devido lugar. – O Branquinho quer falar com
você lá na sala dele...
Agradecendo com um aceno de
cabeça, Raimundo começou a se encaminhar lentamente para os fundos do
estabelecimento, onde ficava um pequeno complexo acinzentado contendo, dentre
espaços destinados aos próprios funcionários, um gabinete dentro do qual o gerente
do posto de gasolina se aninhava e vivia lançando comandos administrativos
bestas aos subordinados pelo telefone.
Humildemente, o frentista bateu
de leve na porta do chefe e colocou a cabeça para dentro da sala.
– Oh, olá, Raimundo, gostaria
de dar uma palavrinha contigo – o gerente, apelidado sarcástica e secretamente
de Branquinho pelos empregados do posto, se pavoneava com diversos dos seus
itens excêntricos de coleção espalhados pela mesa. – Pode se sentar, homem, não
tenha medo – emendou o gerente. O homem não era má gente, afinal.
Coçando a cabeça, já aguardando
pelo pior, Raimundo se sentou na dura poltrona cor de carne dos anos 80
enquanto revezava seu olhar de Branquinho para anéis de lata jogados pela mesa
e vice-versa.
Óbvio, o aguardar do simples
frentista era por uma demissão, ou algo em torno disso. Nada muito além dessa
possibilidade, já que não nutria expectativas quanto a eventuais promoções.
Seus colegas trabalhavam tão bem ou, alguns diriam, melhor do que o próprio
Raimundo.
– O senhor sabe por que lhe
chamei, senhor Raimundo?
– Sei não sinhô, seu Br...uno.
– Acho que você ficou sabendo
do João.
– O Jóinha das Onze?
– Quê?
– Ah, sinhô, é como a rapaziada
chama o rapaz da noite – havia alguns meses, o figurão dono do posto havia
decidido que era hora de manter o estabelecimento aberto por 24 horas. Para
Raimundo, isso não mudou nada, uma vez que foi contratado novo funcionário para
cobrir o horário adicional, o tal do Jóinha das Onze. Raimundo bem sabia que a
origem desse apelido era que, apesar de ter de ficar desperto, João mal
aguentava chegar às onze da noite: antes mesmo das 23 horas, já podia ser visto
encostado num canto, em sono pesado, com, segundo disseram, ambas as mãos
encostadas na barriga fazendo sinal de “jóinha”. Evidente sinal de que o turno
da noite não era lá muito badalado.
– Oh, sim, isso, senhor
Raimundo, o funcionário do turno da noite, esse mesmo a que me referia.
– Sei sim sinhô.
– Mas o senhor sabe o que
houve?
– Com o Jóin... digo, seu João?
– Isso mesmo.
– Sei não sinhô.
– O senhor João, do turno
noturno – iniciou o gerente, numa pose estufada, verdadeiramente lembrando
muito a um pavão abrindo lentamente as penas para impressionar alguém, enquanto
brincava com o dedo com dois aneizinhos de lata – sofreu um grave acidente.
Raimundo, sem saber como
reagir, ficou ali só olhando fixamente os olhos de seu superior, que tentava
passar uma impressão de onisciência absoluta.
– Ele estava dirigindo na
estrada, por uma rodovia qualquer aí – continuou o gerente –, quando o carro
dele foi atingido pelo pedaço de metal de um aquecedor, aparentemente caído dos
céus.
Raimundo permaneceu silente,
apenas concordando com a cabeça e assoviando de leve quando o seu superior
terminou sua frase.
– João está bem, senhor
Raimundo. Foi levado ao hospital, está internado, mas seu estado é estável.
Bateu a cabeça no volante e está sob observação.
– Ah, que bom então, né seu Brun...
– E eu gostaria de saber,
senhor Raimundo – continuou apressadamente o gerente – se o senhor poderia,
amanhã, cobrir o turno noturno do João.
Aquilo era, para Raimundo, uma
verdadeira surpresa.
Ora, para um homem que foi chamado
somente pela segunda ou terceira vez à sala do seu superior em quase sete anos
de trabalho, o pensamento de que o pior estava para acontecer era inevitável.
Mas aquilo, afinal, era
aceitável. Interessante, até, pois Raimundo se lembrou naquela mesma hora de
que na noite seguinte iria receber em casa, a convite de sua esposa, alguns
parentes dela que o próprio Raimundo não ia muito com a cara.
Depois de alguns segundos de
reflexão, a ideia até lhe pareceu boa. O sossego que o turno noturno
aparentemente trazia poderia ser benéfico ao exausto Raimundo, observando a
possibilidade em seu lado positivo.
Erguendo novamente os olhos, o
frentista viu que Branquinho olhava para ele com impaciência, prestes a chamar
sua atenção por uma resposta. Assim, sem demorar seu olhar em algum outro
bibelô daquele gabinete excêntrico, Raimundo balançou a cabeça em sinal
afirmativo, confirmando que poderia cobrir o turno do acidentado João na noite
seguinte.
– Ótimo, senhor Raimundo.
Ficamos assim combinados, então! Esteja aqui amanhã às 21 horas para começar
então – disparou o gerente ao primeiro sinal de concordância de seu
subordinado.
Satisfeito por não ter perdido
o emprego, Raimundo começou a se levantar, quando o chefe ainda acrescentou:
– Ah, e não se preocupe, os
adicionais noturnos e horas extras serão devidamente acrescentados ao seu
numerário ao final do mês – disse o homem enquanto exibia um sorriso amarelado
pelo tabaco que não inspirava lá muita confiança.
Raimundo deixou a sala, já
preparando o discurso que teria de expor à mulher para explicar, com tristeza
simulada, o porquê da sua ausência no glorioso jantar da noite seguinte.
***
Na noite seguinte, às 21:03, lá
estava Raimundo. Menos de cinco minutos depois de sua chegada ao posto, o homem
já estava sozinho.
Atendeu à cada vez mais
minguada freguesia que lá parava e, quando o relógio marcava 22:07, já não
havia mais nenhum cliente para atender. Raimundo teve certeza, então, de que o
apelido do Jóinha das Onze tinha lá seu fundo de verdade.
Com uma pontada de tédio,
Raimundo perambulou pelo estabelecimento. Checou as bombas, o caixa, os
freezers, a bomba de calibragem, os produtos na estante de óleos de motor, as
plantinhas, os letreiros, os preços em exposição, as posições das mangueiras
devidamente encaixadas todas em seus devidos lugares. Deu uma olhada em seu
relógio: 22:24.
Sem conseguir imaginar algo
melhor para fazer pelas próximas horas, avistou a cadeira ao lado do freezer de
gelo, que provavelmente era onde Jóinha das Onze exercia sua árdua tarefa
ociosa de todas as noites. Foi lá que Raimundo se acomodou e constatou que,
sim, aquela cadeira era estranhamente aconchegante e confortável.
Não olhou mais o relógio.
Observava a imensidão escura
que rodeava a área iluminada e vazia do posto de gasolina. O frentista
constatou, de forma indubitável, que a ideia de deixar o local aberto 24 horas
era na verdade uma baita baboseira. Não havia ninguém lá para atender, e
Raimundo não conseguia imaginar o quanto um ou outro cliente que pudesse
aparecer naquele período iria compensar os gastos que o figurão dono do posto
teria em prolongar o horário de abertura do posto.
Ainda mais naquela cidade.
Afinal, quem iria, no meio da
madrugada, querer abastecer seu carro na pacata cidade de Varginha? O estado de
Minas Gerais tinha outras cidades maiores que, talvez, compensariam o
investimento de deixar um estabelecimento aberto 24 horas, mas Raimundo
visualizava que ali, não.
Bem, cedo ou tarde o figurão
iria notar isso.
Raimundo começou a imaginar,
ainda encarando a imensidão escura da rua que passava na frente do posto, o
quão sortudo era por ter obtido uma desculpa perfeitamente razoável para se
ausentar de casa justamente naquela data.
Uma satisfeita risada mental
foi a última coisa que Raimundo se lembrava.
O frentista apagou, sentado na
confortável cadeira do Jóinha das Onze.
Depois de sabe-se lá quanto
tempo, o homem foi despertando devagar. A cabeça estava meio tombada, e
Raimundo observou que suas mãos, entrelaçadas, formaram naturalmente dois
sinais de jóinha. Quase rindo, pretendia se levantar para lavar o rosto, quando
avistou, ao longe, uma figura se aproximando no meio da rua, já não banhada
completamente pela escuridão da noite para passar despercebida.
O instinto inicial de Raimundo
foi se levantar, mas pensou melhor a questão. Afinal, estava em posição de
soneca e, se fosse avistado daquela maneira, provavelmente o estranho não iria
lhe fazer mal algum. O frentista não sabia quem se aproximava, mas a julgar
pelo vulto, era uma figura alta e esquisita. Sabe-se lá se estaria armado, e
Raimundo decidiu que não estava disposto a arriscar sua vida para proteger o
patrimônio de seu chefe imprudente.
A figura continuou a avançar.
Parecia-se que estava mancando, a julgar pela dificuldade com a qual passava a
perna esquerda adiante no movimento da caminhada. Raimundo ficou quietinho.
O vulto, enfim, foi banhado por
um pouco mais de luz, ao passo que foi possível para o frentista ver, com os
olhos semicerrados e o queixo quase encostado no peito, numa perfeita simulação
de funcionário dorminhoco, que era um sujeito realmente peculiar.
Raimundo não conseguiu diferir
exatamente qual era a roupa que o visitante usava, mas pôde ver que sua pele
era de um bege-mostarda extremamente escuro, quase beirando um marrom claro. Os
olhos pareciam grandes e brilhavam num tom que Raimundo preferiu ignorar. O
sujeito, da mesma forma, ignorou quase que completamente a presença do
frentista.
– Uahahhhhhhhhhhhh-BLopg –
grunhiu o visitante. Raimundo começou a desconfiar, ligeiramente assustado, que
o indivíduo havia ingerido cavalares doses de tóxicos.
Sendo ou não perigosa aquela
figura, Raimundo decidiu por bem manter sua farsa e permaneceu quase inerte. A
própria respiração não estava lá muito constante e quase parou por completo
quando o sujeito se jogou no chão.
– Eita nóis... – o frentista cochichou para si mesmo ao presenciar a
cena.
Depois do que pareceram alguns
minutos, quando Raimundo começou a achar que o visitante estava morto, o corpo
caído começou a se mexer e a figura se arrastou até um dos baldes de água que
ficava próximo da bomba de gasolina número 2.
Com as mãos nervosas, suando,
agarrando uma à outra mais forte, o frentista viu quando aquela esquisitice
toda pegou o balde com suas mãos de dedos inegavelmente longos e, num movimento
desajeitado, despejou todo o conteúdo em sua cabeça.
O balde estava meio cheio e a
água fria bateu naquela cabeça com um barulho que lembrava o cair de líquido em
outro recipiente cheio daquele mesmo líquido. Raimundo achou estranho, pois foi
como se o visitante tivesse vertido a água dentro de outro balde com água.
Com um gemido de alívio
perfeitamente perceptível, como alguém que, muito apertado, finalmente se
alivia, o visitante esquisito se levantou lentamente. Em pé, olhou à volta, e
fez um breve passeio pela parte da frente do recinto.
Mesmo com os olhos parcialmente
fechados, Raimundo não conseguiria tomara aquele sujeito como algum outro
funcionário do posto fazendo uma ronda, por exemplo, pois a excentricidade
daquele indivíduo saltava cada vez mais aos olhos.
Com sua cabeçorra
desproporcional ao resto do corpo, o sujeito sacou de um bolso de trás de sua
calça (ou de um compartimento traseiro do cinto), um objeto brilhante que
Raimundo não pôde identificar.
Digitando coordenadas
frenéticas, o visitante virava a cabeça para um lado e para o outro
rapidamente, mapeando a rua. Quando terminou, guardou o aparelho no mesmo lugar
de onde o tirara e, surpreendendo novamente Raimundo, soltou um senhor arroto e
coçou a coxa esquerda com aqueles dedos esquisitos.
O frentista, imóvel, simulando
o mais perfeito dos sonos, não conseguiu deixar de notar que aquele arroto não
era um arroto qualquer. Parecia, na verdade, que aquele sujeito havia ingerido
litros e mais litros de refrigerante segundos antes para arrotar daquela forma.
Mais parecia um berrante chamando a boiada do que um arroto genuíno. E tudo o
que Raimundo vira o visitante fazer, apesar de toda a loucura que poderia
representar, não justificava aquele estrondo retumbante.
Sujeitinho estranho. Raimundo
já não aguentava mais esperar e já planejava se levantar, jogar gasolina no
infeliz e acionar seu isqueiro na cara daquele corno maluco enquanto corria
escuridão adentro.
Depois de um momento, a ideia
já não lhe pareceu muito inteligente. Mas, de qualquer forma, queria se
levantar e assustar aquele cara da mesma forma que ele assustara o indefeso
Raimundo.
Depois de mais um momento, a
serenidade retornou ao intelecto do frentista e Raimundo, já mais conformado,
permaneceu quieto e sua posição de cover do Jóinha das Onze.
Com os olhos entreabertos, um
pouquinho mais ousado do que antes, viu que o sujeito esquisito começou a
avançar para o meio da rua.
Quando alcançou o exato centro
entre um meio-fio e outro, o sujeito parou. Apesar da parcial escuridão daquele
ponto da rua, Raimundo viu que a figura acenava as mãos e colocava um pé na
frente do outro sem, afinal, sair do lugar. Parecia estar...
Dançando.
E dançando uma música
imaginária infantil.
Raimundo teve certeza de que,
se estivesse perto o suficiente, poderia escutar aquela esquisitice toda
cantando um jingle para animar festas de criança.
E, tão súbito quanto a chegada
do sujeito, sua queda, seus movimentos no chão, a água na cabeça, o saque do
aparelho brilhante, o arroto reverberante e o início dos movimentos
desordenados, a dancinha parou.
Raimundo não soube mais o que
esperar daquilo.
Enquanto observava a figura
excêntrica parada no meio da rua, o sono voltou a assaltar o frentista, de
forma que sua cabeça tombou um pouquinho mais. Raimundo não soube dizer se
tornou a fechar os olhos momentos antes daquilo ou não, mas a figura ainda
estava parada quando uma luz incrivelmente discreta – mas inexplicavelmente
brilhante – projetou um círculo em volta do visitante.
Raimundo piscou novamente e,
quando abriu mais uma vez os olhos, dessa vez por completo, a luz já havia sumido
junto com o sujeito esquisito, dando lugar à habitual escuridão que tomava a
rua àquela hora da noite, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
Boquiaberto, Raimundo se
esticou na cadeira e olhou em volta. Não viu sinal algum da existência daquela
figura esquisita que estivera ali até então e que, num piscar de olhos, sumira
junto com uma luz igualmente esquisita.
Esticou um pouco mais o pescoço
e viu o balde tombado ali no chão ainda úmido.
Voltou a apoiar as costas no
encosto, ainda sem saber como explicar aquela cena toda que presenciara.
Sentiu, porém, o sono retornar.
– Essa molecada de hoje em
dia... – murmurou Raimundo, enquanto ajeitava a bunda no assento da cadeira e
se entregava de vez ao sono.
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