terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Seiscentos e trinta e quatro

Sentia aquele hálito gelado na nuca enquanto os dedos descarnados dançavam suavemente sob a parte lateral de seu ombro. A imagem de um pobre infeliz como ele lhe apareceu à frente, num estrondoso grito sem voz, de voz que nunca seria ouvida, súplica silenciosa jamais recebida. Permaneceu parado enquanto a encapuzada misteriosa com seu beijo doce de perdição se aproximava cada vez mais; qualquer um poderia ter tentado correr. Sabia que ali, naquele campo, naquele local, naquele momento, este tipo de atitude seria completamente inútil. A figura do condenado à sua frente já não estava ansioso. Aguardava paciente. Não olhava mais pra ele, mas para a Temida atrás dele, que agora segurava com certa firmeza seu braço. O abraço da morte se aproximava. Chovia. Em meio à névoa, três figuras perdidas do mundo da realidade compartilhavam em contemplação reverente aquele pacto fatal que se alinhavava. Palavras humanas seriam insuficientes para descrever aquele tempestuoso, porém sereno momento. Dois condenados, um carrasco. A Morte quase o abraçava e, sentindo frio, mesmo à mercê do gélido toque da Dama de Preto, não se moveu. Sua atenção estava quase toda no sereno sujeito à sua frente que, em meio à escuridão, não estava marcado com a mórbida presença dela como ele estava. Aí, a compreensão e a certeza golpearam instantaneamente o quase-abraçado. Moribundo, ele, quase entregue à morte. O sujeito que encarava, porém, apesar de habitar de forma febril seus raivosos pensamentos, não. Sua jornada, então, teria que chegar ao seu fim. A Morte aproximava suas próprias mãos uma da outra em volta dele, praticamente completando o abraço que o levaria, quando ele se desvencilhou e deu um abrupto passo com firmeza para frente, movimento que fez com que os dedos descarnados e pontiagudos marcassem com profundos cortes seus braços. "Ainda não."

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Cacos ao chão

Normalmente o trânsito naquela hora da manhã era bem truncado e frenético por conta dos tão amados motoqueiros-costureiros apressados. Percorriam-se vinte metros para então ficar parado por pouco mais de um minuto ao se acender o vermelho no sinal. E aquele dia não vinha sendo diferente: Gabriel dos Alencar, com suas raras habilidades automobilísticas, guiava pela faixa da direita da avenida quase atingindo o limite da sua curta paciência.
Parou ao sinal fechado, com cerca de quatro carros à sua frente e o sol mandando suas lembranças ao lamber os pára-brisas dos veículos ali esperando como ele, quando observou o sujeito atravessando a rua na faixa.
Tratava-se do tão conhecido anão japonês daquele bairro, que trabalhava no açougue duas quadras pra frente. Enquanto os olhos de Alencar seguiam o homem que andava a seu próprio ritmo, mal pôde processar a informação de que um estrondoso barulho de motor sendo elevado aos seus limites se aproximava à direita...
E, por conta da pequena distração nipônica, por um pouco não viu quando um verdadeiro animal guiando uma esguia motocicleta vinha a mil pela direita, entre os carros com seus motoristas esperando e os carros estacionados na via.
Quando virou o olhar para o lado, tudo o que conseguiu ver foi o momento em que motoqueiro, agora abaixado para conferir mais aerodinâmica ao seu inconseqüente pilotar, passou moendo tudo ao seu lado, produzindo um triste e doído (para Gabriel) barulho de quebra que não lhe soou nada bom. Todavia, antes mesmo de processar aquela informação, talvez antes mesmo de poder virar o rosto e já no momento em que viu o anão japonês, Gabriel pressentiu o inevitável: seu retrovisor direito restaria pendurado apenas pelos fios, graças às gentilezas daquele motoqueiro absolutamente desequilibrado.
– SEU FILHO DA PU... – não terminou de esbravejar sua polida resposta ao ocorrido pois o arranca-espelhos já se encontrava longe. Obviamente furara o sinal, quase se chocando com o inocente nipônico de baixa estatura que, mais do que todos os outros motoristas ali parados, nada tinha a ver com aquela situação toda.
Indignado e consternado, Alencar recebeu olhares de solidariedade e igual indignação de seus vizinhos de sinal, observando da mesma forma nas feições do rapaz que vendia balas e drops a clara formação de uma expressão de “viiiiiiiiiiish” se anuviando.
– Essas bostas fazem parte, cara! Segue o jogo! – Alguém gritou. Em resposta, acenou com a cabeça e deu um sorriso meio amarelado, pois por dentro fervilhava, tomado por uma profunda ira, que foi se tornando mais branda depois que ele começou a contar suas longas respirações ao buscar diminuir a irritação. Afinal, o sujeito que lhe deu apoio tinha razão.
Na hora de voltar a se movimentar, engatou a primeira e seguiu seu rumo rotineiro, deixando alguns cacos quebrados para trás.
O espelho retrovisor demoraria uma semana e meia para arrumar, e isso depois de quase ser pego pela fiscalização de trânsito da cidade. O motoqueiro imbecil, nunca mais viu. No dia seguinte, já se deparou com o anão japonês de novo.