terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Seiscentos e trinta e quatro

Sentia aquele hálito gelado na nuca enquanto os dedos descarnados dançavam suavemente sob a parte lateral de seu ombro. A imagem de um pobre infeliz como ele lhe apareceu à frente, num estrondoso grito sem voz, de voz que nunca seria ouvida, súplica silenciosa jamais recebida. Permaneceu parado enquanto a encapuzada misteriosa com seu beijo doce de perdição se aproximava cada vez mais; qualquer um poderia ter tentado correr. Sabia que ali, naquele campo, naquele local, naquele momento, este tipo de atitude seria completamente inútil. A figura do condenado à sua frente já não estava ansioso. Aguardava paciente. Não olhava mais pra ele, mas para a Temida atrás dele, que agora segurava com certa firmeza seu braço. O abraço da morte se aproximava. Chovia. Em meio à névoa, três figuras perdidas do mundo da realidade compartilhavam em contemplação reverente aquele pacto fatal que se alinhavava. Palavras humanas seriam insuficientes para descrever aquele tempestuoso, porém sereno momento. Dois condenados, um carrasco. A Morte quase o abraçava e, sentindo frio, mesmo à mercê do gélido toque da Dama de Preto, não se moveu. Sua atenção estava quase toda no sereno sujeito à sua frente que, em meio à escuridão, não estava marcado com a mórbida presença dela como ele estava. Aí, a compreensão e a certeza golpearam instantaneamente o quase-abraçado. Moribundo, ele, quase entregue à morte. O sujeito que encarava, porém, apesar de habitar de forma febril seus raivosos pensamentos, não. Sua jornada, então, teria que chegar ao seu fim. A Morte aproximava suas próprias mãos uma da outra em volta dele, praticamente completando o abraço que o levaria, quando ele se desvencilhou e deu um abrupto passo com firmeza para frente, movimento que fez com que os dedos descarnados e pontiagudos marcassem com profundos cortes seus braços. "Ainda não."

Acordou.

Havia adormecido com a testa no volante e teve plena certeza de que por um pouco quase não acordaria mais. Com o dorso da mão limpou o sangue que escorria com maior volume do nariz. Olhar fixo na estrada que seguia à sua esquerda e o que antes era raiva, vingança, agora era encarado como um fardo inevitável de uma missão a ser concluída.

"Eu vou, mas depois dele. Vou entregá-lo com prazer pra você antes, Dona."

Deu partida no carro, que engasgou e soltou pelotas de fumaça pelo escapamento ao ser ligado pela última vez. Antes de zarpar, seus olhos baixaram e encontraram os braços, que por sua vez estavam com quatro cortes com sangue já seco em cada um, o que fez com que, pela primeira vez desde que sua memória o permitia lembrar, seus lábios se esticassem em um tímido sorriso.

A forte luz do sol se pondo foi testemunha do reinício da viagem de mais 634 quilômetros até o destino final daquele homem já condenado. O outro, certamente, iria pagar. Tossiu, expelindo um pouco mais de sangue, e engatou a primeira. A Morte iria esperar um pouco mais e, ao preço de um, levaria dois.

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