Naquele dia o sol castigava aqueles que se expunham a ele mais do que
o habitual, seja pela ausência de nuvens ou mesmo pela estação do
ano propícia a isso. As árvores exibiam seu verde vivo e forte que
dançava em diferentes ritmos à medida que o vento cortejava suas
folhas e galhos. Oito horas da manhã e a avenida não estava tão
abarrotada como sempre, apesar de contar, em seus dez quilômetros de
extensão, com uma considerável quantidade de carros transitando,
acelerando, parando, se arriscando, atrasados e sossegados.
Dia comum. A não ser por algumas figuras.
Quilômetro 1,5: no ponto de ônibus lá estava o bêbado, em plena
manhã de quarta-feira, conversando com o imaginário ou aquilo que
os outros sóbrios – pobres deles – não podiam ver. Gesticulava,
enquanto descansava naquele banco destinado aos pacientes futuros
passageiros do transporte coletivo. Apontando para o lado, no sentido
dos carros que seguiam naquela faixa, soltou uma gargalhada.
Certamente era o mais feliz sujeito daquela avenida e um dos mais
felizes da cidade inteira, pois não se importava com nada além de
seus devaneios surreais. Um sujeito de sorte.
Quilômetro 4: aproveitando que as duas faixas da mão que vai para o
sentido norte da avenida estavam vazias em virtude do sinaleiro
fechado ali atrás, um rapaz de no máximo 19 anos deslizava com
graciosa perícia em seu skate, aproveitando a descida e ambas as
faixas num ziguezague hipnotizante que evidentemente seria impossível
dali a alguns segundos. Com o vento a seu favor, percorreu
considerável distância aos olhos dos observadores nos veículos que
aguardavam. Ao chegar em um ponto com outros carros, se meteu na
linha do meio, entre as duas fileiras, como um motoqueiro, alcançando
o outro sinaleiro já em franca desaceleração. Um grande skatista
urbano, de fato.
Quilômetro 5,3: um cachorro atravessando a rua. Comum, tanto para
aqueles que começam a ir, veem o perigo e dão meia volta, quanto
para os que infelizmente perdem as vidas em meio a essas empreitadas;
pobres animais. Porém, quanto a esse cão em específico, cabe
pontuar sua aguda audácia e inteligência. Isso porque saindo da
sombra da calçada, o canino se lançou à rua, decidido a chegar ao
outro lado, em impetuosa determinação, verdadeiramente inabalável
espírito. Passou um carro à sua frente e o cachorro prontamente
passou para o meio da via, entre as duas faixas, no exato momento em
que outro carro rasgava o asfalto pela faixa seguinte – ora, se o
cão tivesse seguido sua passada, teria sido pego. Paradinho no seu
local estratégico, atento, aguardou por mais três carros, quando
farejou o skatista. Conhecia o rapaz, pois ele sempre passava por ali
a pé. Na hora exata, entre uma camionete e uma Fiorino que vinha com
mais vagar, concluiu sua travessia, alcançando o canteiro que ficava
no meio da avenida, entre as duas mãos direcionais. Foi nesse
momento que, com toda sua inteligência, o cachorro percebeu a
burrada que cometeu. Bateu a cabeça na grama se lamentando, como se
com o gesto repetisse a si mesmo “seu burro! Você é burro
demais!”, pois, ao finalmente alcançar o canteiro, viu que aquele
outro-lado-da-avenida não era aquilo que ele imaginava. Ainda tinha
outro trajeto igualmente desafiador para encarar – a mão de
sentido oposto – ou abortar a missão e voltar para onde estava
desde o início, na sombrinha gostosa, encarando novamente aquela
mesma dupla de faixas que tinha acabado de vencer. Pois bem, decidiu
por voltar. E só por essa elucubração intensa que o cão
desenvolveu, percebe-se ser um cachorro diferenciado.
Quilômetro 8,9: outro bêbado, esse de pé, com a garrafa ainda em
mãos, cantando a todo fôlego uma das canções de Pavarotti. Outro
fato peculiar é que no meio da música, o sujeito introduzia trechos
de hits do Wesley Safadão e Beyoncé. Uma verdadeira pérola, que
algumas pessoas paravam na calçada para registrar em vídeo –
enquanto cuidavam também para prontamente socorrer o bêbado caso
ele desse um passo para sua direita, para impedir que ele caísse na
rua e causasse um acidente. O homem, que fazia seu show virado para o
sentido contrário dos carros, de pé no meio-fio, era grande centro
das atenções de todos, naquela ensolarada manhã de quarta-feira na
movimentada avenida central. As pessoas iam, vinham, passavam e
olharam. E aquele bêbado, dentro de instantes, encontraria o
skatista e cumprimentaria o cachorro, que agora transitava pelo velho
lado da calçada.
Mais um dia na cidade.
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