quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Diário matinal de uma avenida urbana

Naquele dia o sol castigava aqueles que se expunham a ele mais do que o habitual, seja pela ausência de nuvens ou mesmo pela estação do ano propícia a isso. As árvores exibiam seu verde vivo e forte que dançava em diferentes ritmos à medida que o vento cortejava suas folhas e galhos. Oito horas da manhã e a avenida não estava tão abarrotada como sempre, apesar de contar, em seus dez quilômetros de extensão, com uma considerável quantidade de carros transitando, acelerando, parando, se arriscando, atrasados e sossegados.
Dia comum. A não ser por algumas figuras.
Quilômetro 1,5: no ponto de ônibus lá estava o bêbado, em plena manhã de quarta-feira, conversando com o imaginário ou aquilo que os outros sóbrios – pobres deles – não podiam ver. Gesticulava, enquanto descansava naquele banco destinado aos pacientes futuros passageiros do transporte coletivo. Apontando para o lado, no sentido dos carros que seguiam naquela faixa, soltou uma gargalhada. Certamente era o mais feliz sujeito daquela avenida e um dos mais felizes da cidade inteira, pois não se importava com nada além de seus devaneios surreais. Um sujeito de sorte.
Quilômetro 4: aproveitando que as duas faixas da mão que vai para o sentido norte da avenida estavam vazias em virtude do sinaleiro fechado ali atrás, um rapaz de no máximo 19 anos deslizava com graciosa perícia em seu skate, aproveitando a descida e ambas as faixas num ziguezague hipnotizante que evidentemente seria impossível dali a alguns segundos. Com o vento a seu favor, percorreu considerável distância aos olhos dos observadores nos veículos que aguardavam. Ao chegar em um ponto com outros carros, se meteu na linha do meio, entre as duas fileiras, como um motoqueiro, alcançando o outro sinaleiro já em franca desaceleração. Um grande skatista urbano, de fato.
Quilômetro 5,3: um cachorro atravessando a rua. Comum, tanto para aqueles que começam a ir, veem o perigo e dão meia volta, quanto para os que infelizmente perdem as vidas em meio a essas empreitadas; pobres animais. Porém, quanto a esse cão em específico, cabe pontuar sua aguda audácia e inteligência. Isso porque saindo da sombra da calçada, o canino se lançou à rua, decidido a chegar ao outro lado, em impetuosa determinação, verdadeiramente inabalável espírito. Passou um carro à sua frente e o cachorro prontamente passou para o meio da via, entre as duas faixas, no exato momento em que outro carro rasgava o asfalto pela faixa seguinte – ora, se o cão tivesse seguido sua passada, teria sido pego. Paradinho no seu local estratégico, atento, aguardou por mais três carros, quando farejou o skatista. Conhecia o rapaz, pois ele sempre passava por ali a pé. Na hora exata, entre uma camionete e uma Fiorino que vinha com mais vagar, concluiu sua travessia, alcançando o canteiro que ficava no meio da avenida, entre as duas mãos direcionais. Foi nesse momento que, com toda sua inteligência, o cachorro percebeu a burrada que cometeu. Bateu a cabeça na grama se lamentando, como se com o gesto repetisse a si mesmo “seu burro! Você é burro demais!”, pois, ao finalmente alcançar o canteiro, viu que aquele outro-lado-da-avenida não era aquilo que ele imaginava. Ainda tinha outro trajeto igualmente desafiador para encarar – a mão de sentido oposto – ou abortar a missão e voltar para onde estava desde o início, na sombrinha gostosa, encarando novamente aquela mesma dupla de faixas que tinha acabado de vencer. Pois bem, decidiu por voltar. E só por essa elucubração intensa que o cão desenvolveu, percebe-se ser um cachorro diferenciado.
Quilômetro 8,9: outro bêbado, esse de pé, com a garrafa ainda em mãos, cantando a todo fôlego uma das canções de Pavarotti. Outro fato peculiar é que no meio da música, o sujeito introduzia trechos de hits do Wesley Safadão e Beyoncé. Uma verdadeira pérola, que algumas pessoas paravam na calçada para registrar em vídeo – enquanto cuidavam também para prontamente socorrer o bêbado caso ele desse um passo para sua direita, para impedir que ele caísse na rua e causasse um acidente. O homem, que fazia seu show virado para o sentido contrário dos carros, de pé no meio-fio, era grande centro das atenções de todos, naquela ensolarada manhã de quarta-feira na movimentada avenida central. As pessoas iam, vinham, passavam e olharam. E aquele bêbado, dentro de instantes, encontraria o skatista e cumprimentaria o cachorro, que agora transitava pelo velho lado da calçada.
Mais um dia na cidade.

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