Caía.
Embaixo de si, nada além das fortes rajadas de
vento que vinham de encontro com seu corpo paralisado que, sob a influência
irresistível da gravidade
você
não
devia
...
caía.
Olhava à volta. Nada além de escuridão, no que
parecia ser uma parede cavernal úmida e perigosa. A agonia crescia em seu
peito, pois a queda parecia não ter fim – num abismo infernal que, apesar de
conter toques evidentemente oníricos, não se tratava de um daqueles simples
sonhos de queda livre. Sua própria alma estava gelada e, se pudesse em sua
consciência apostar em algo, apostaria que aquilo tudo era
vá
embora
realidade.
Quem? Chorava um pranto silencioso que não simbolizava
simplesmente tristeza, mas a angústia de seu ser transbordando pelos olhos. As
lágrimas, contudo, não tinham tempo para sequer rolar em seu rosto, se tornando
pontos brilhantes acima enquanto o corpo era puxado para baixo, com crescente
violência.
Não podia gritar. A voz lhe falhava
miseravelmente e, após uma fracassada tentativa de emitir algum som, desistiu.
O medo era maior e peremptório em sua mente. E, afinal, teve um pressentimento
sinistro de que mesmo que conseguisse gritar a plenos pulmões, ninguém a
ouviria.
Caiu por tanto tempo que já não conseguia mais
ter uma noção ao menos distante de tempo e espaço. Sentia frio. E o medo
angustiante crescendo não só mais no peito, mas abraçando-a por completo. O
vento de rajadas cortantes parecia pequenas e afiadas facas beijando de forma
displicente seu corpo. Se ela estava sangrando, já não percebia mais. O frio
agora fazia parte dela, e a escuridão parecia querer aumentar.
tarde
demais
para
Começou a reparar, à sua volta, a formação de uma
névoa sinistra e medonha, que deixou sua visão turva por conta de um breu ainda
maior que rapidamente se formou acima, aos lados e abaixo, à medida que caía.
você.
E, sem mais nem menos, parou de cair. De forma
abrupta e dolorosa, foi de encontro a algo que lhe lembrava, pelo toque, um
gramado úmido e alto. Mais parecia, na verdade, um gigantesco animal adormecido
de pelos molhados, tamanha era a tensão no solo que o fazia se mexer para cima
e para baixo de forma sutil, mas perceptível, assemelhando-se tal movimento à
respiração de uma fera em sonho.
Seu pavor diante do cenário que se estendia diante
de seus olhos, porém, impediu-a de conjecturar de maneira mais profunda acerca
do solo onde pousou.
Sabia que a queda certamente deveria tê-la
matado. Sua consciência era a prova de que aquilo era um sonho – e será que era
mesmo? Sentia aquele ambiente mórbido e cheio de névoa tão intensa e
vividamente...
não.
Não conseguiu resistir ao impulso de se
levantar. Outra coisa que não conseguia fazer era se livrar da imagem que seus
olhos encaravam aterrorizados à frente. Se pudesse virar o rosto veria que à
volta era tudo a mais pura e profunda escuridão, não havendo outro caminho a
seguir ou outro elemento a observar.
Seu coração não parecia estar batendo mais. O
medo tomara conta de tudo nela, e o órgão pulsante foi forçado a parar de
martelar seu peito de forma violenta como estava fazendo até pouco tempo antes.
Parecia apreensivo, como ela. A respiração lhe falhava desesperadamente.
Apesar de não conseguir, pelo que parecia uma
força magnética e doentia que atraía seus olhos, desviar a visão daquilo, a
cena toda em um geral a enchia de repulsa, desespero, angústia e medo. De
longe, nunca estivera tão apavorada na vida como quando viu aquela figura
esguia, de braços pálidos, duas mãos com três compridos dedos em cada e garras cinzentas
com um capuz sujo a lhe cobrir o corpo e a cabeça. Olhando-a de volta. Ela não
conseguiu encontrar nome para aquilo e, gaguejando, sentiu algo lhe tocando a
mente, e sabia que a coisa inominável possuía olhos famintos e ferozes, que
tinham nela seu único foco.
Foi depois de longos minutos que mais lhe
pareceram horas que ela pôde observar outras figuras como aquela maior, também
a olhando com curiosidade. Eram menores, mais rechonchudas e confabulavam entre
si com ansiedade. Estavam todas em volta da maior, que ao que tudo indicava era
uma espécie de líder.
As criaturas sombrias estavam mais perto do que
a percepção prejudicada e distorcida dela a havia permitido compreender num
primeiro momento. Encontravam-se embaixo de uma espécie de cobertura feita de
palha e troncos rústicos, com uma longa mesa de madeira antiga e grossa atrás
dos encapuzados. Toda a misticidade profana daquele lugar a fazia se lembrar de
uma espécie de santuário, de altar misterioso. O espaço se estendia para trás
pelo que parecia quilômetros a fio, mergulhados na escuridão.
Ela tentou recuar, mas logo após alguns passos
para trás trombou em uma superfície dura e rochosa. Compreendeu que tinha caído
no sopé de uma gigantesca montanha, em uma espécie de vale. Vale de sombras,
vale tenebroso de trevas macabras, de figuras que não compreendia e não ousava
tentar compreender.
A figura inominada, a mais alta e
definitivamente mais pavorosa de todas, começou a se aproximar lentamente dela.
Com a distância mais curta entre eles, ela foi
capaz de sentir um hálito gelado e horripilante emanando daquela fenda escura
que deveria ter um rosto, mas sabe-se lá o que ocultava.
Os pequenos foram timidamente caminhando atrás
do mestre, mas, ao contrário deste, sussurravam freneticamente em um dialeto
perdido, que humano algum poderia ser capaz de compreender ou ao menos escutar
sem perder a sanidade.
Agarrando-se à base da montanha, gelada e
molhada com o suor dela, a certeza de que aquilo não se tratava de um sonho
tomou conta da descompassada mente dela. As criaturinhas quase saltavam de
excitação quando o líder, a criatura horrenda e inominável, cravou uma de suas
garras nela com rapidez e força surpreendentes.
Quase desfalecendo em angústia e, agora, dor física
insuportável, ela olhou pra baixo e viu um mar vermelho banhando aquele braço
pálido que a perfurara. Quando, em um último suspiro desesperado, ela olhou
para cima, quase pôde ver três pontos brilhando em vermelho dentro do capuz,
além de sentir mais arrebatadoramente a fria brisa fétida que de lá saía.
Ouviu, novamente, aquela mesma voz que falava
com ela durante a queda, mas desta vez sem dizer qualquer coisa que ela pudesse
compreender. Chorando, abaixou novamente a cabeça, e seu próprio sangue
banhando aquele braço hediondo foi a última coisa que viu.
Ela nunca mais acordou.
Partes de seus restos mortais foram encontradas
algum tempo depois, em uma região inóspita e abandonada, cheia de superstições
e crenças de tal forma que os habitantes de vilarejos próximos ao limite da
área sempre repreendem de forma veemente qualquer visitante que manifeste a
intenção de lá visitar.
Diziam os supersticiosos ser a região habitada
por criaturas malignas e poderosas, lenda esta que certamente amedrontou por
muito tempo os corações daqueles que por ali passavam, fomentando o imaginário
e a capacidade de criação das mais diversas suposições nas mentes dos que se
entregavam ao mistério.
No fim das contas, sendo as lendas e dizeres
infundados ou não, uma coisa é certa: todos os caminhantes sempre passavam o
mais longe possível ou, se era inevitável, permaneciam o mínimo que podiam nos
domínios do famigerado e escuro vale das sombras.
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