domingo, 22 de março de 2015

O vale das sombras

Caía.
Embaixo de si, nada além das fortes rajadas de vento que vinham de encontro com seu corpo paralisado que, sob a influência irresistível da gravidade
você
não
devia
...
caía.
Olhava à volta. Nada além de escuridão, no que parecia ser uma parede cavernal úmida e perigosa. A agonia crescia em seu peito, pois a queda parecia não ter fim – num abismo infernal que, apesar de conter toques evidentemente oníricos, não se tratava de um daqueles simples sonhos de queda livre. Sua própria alma estava gelada e, se pudesse em sua consciência apostar em algo, apostaria que aquilo tudo era
embora
realidade.
Quem? Chorava um pranto silencioso que não simbolizava simplesmente tristeza, mas a angústia de seu ser transbordando pelos olhos. As lágrimas, contudo, não tinham tempo para sequer rolar em seu rosto, se tornando pontos brilhantes acima enquanto o corpo era puxado para baixo, com crescente violência.
Não podia gritar. A voz lhe falhava miseravelmente e, após uma fracassada tentativa de emitir algum som, desistiu. O medo era maior e peremptório em sua mente. E, afinal, teve um pressentimento sinistro de que mesmo que conseguisse gritar a plenos pulmões, ninguém a ouviria.
Caiu por tanto tempo que já não conseguia mais ter uma noção ao menos distante de tempo e espaço. Sentia frio. E o medo angustiante crescendo não só mais no peito, mas abraçando-a por completo. O vento de rajadas cortantes parecia pequenas e afiadas facas beijando de forma displicente seu corpo. Se ela estava sangrando, já não percebia mais. O frio agora fazia parte dela, e a escuridão parecia querer aumentar.
tarde
demais
para
Começou a reparar, à sua volta, a formação de uma névoa sinistra e medonha, que deixou sua visão turva por conta de um breu ainda maior que rapidamente se formou acima, aos lados e abaixo, à medida que caía.
você.
E, sem mais nem menos, parou de cair. De forma abrupta e dolorosa, foi de encontro a algo que lhe lembrava, pelo toque, um gramado úmido e alto. Mais parecia, na verdade, um gigantesco animal adormecido de pelos molhados, tamanha era a tensão no solo que o fazia se mexer para cima e para baixo de forma sutil, mas perceptível, assemelhando-se tal movimento à respiração de uma fera em sonho.
Seu pavor diante do cenário que se estendia diante de seus olhos, porém, impediu-a de conjecturar de maneira mais profunda acerca do solo onde pousou.
Sabia que a queda certamente deveria tê-la matado. Sua consciência era a prova de que aquilo era um sonho – e será que era mesmo? Sentia aquele ambiente mórbido e cheio de névoa tão intensa e vividamente...
não.
Não conseguiu resistir ao impulso de se levantar. Outra coisa que não conseguia fazer era se livrar da imagem que seus olhos encaravam aterrorizados à frente. Se pudesse virar o rosto veria que à volta era tudo a mais pura e profunda escuridão, não havendo outro caminho a seguir ou outro elemento a observar.
Seu coração não parecia estar batendo mais. O medo tomara conta de tudo nela, e o órgão pulsante foi forçado a parar de martelar seu peito de forma violenta como estava fazendo até pouco tempo antes. Parecia apreensivo, como ela. A respiração lhe falhava desesperadamente.
Apesar de não conseguir, pelo que parecia uma força magnética e doentia que atraía seus olhos, desviar a visão daquilo, a cena toda em um geral a enchia de repulsa, desespero, angústia e medo. De longe, nunca estivera tão apavorada na vida como quando viu aquela figura esguia, de braços pálidos, duas mãos com três compridos dedos em cada e garras cinzentas com um capuz sujo a lhe cobrir o corpo e a cabeça. Olhando-a de volta. Ela não conseguiu encontrar nome para aquilo e, gaguejando, sentiu algo lhe tocando a mente, e sabia que a coisa inominável possuía olhos famintos e ferozes, que tinham nela seu único foco.
Foi depois de longos minutos que mais lhe pareceram horas que ela pôde observar outras figuras como aquela maior, também a olhando com curiosidade. Eram menores, mais rechonchudas e confabulavam entre si com ansiedade. Estavam todas em volta da maior, que ao que tudo indicava era uma espécie de líder.
As criaturas sombrias estavam mais perto do que a percepção prejudicada e distorcida dela a havia permitido compreender num primeiro momento. Encontravam-se embaixo de uma espécie de cobertura feita de palha e troncos rústicos, com uma longa mesa de madeira antiga e grossa atrás dos encapuzados. Toda a misticidade profana daquele lugar a fazia se lembrar de uma espécie de santuário, de altar misterioso. O espaço se estendia para trás pelo que parecia quilômetros a fio, mergulhados na escuridão.
Ela tentou recuar, mas logo após alguns passos para trás trombou em uma superfície dura e rochosa. Compreendeu que tinha caído no sopé de uma gigantesca montanha, em uma espécie de vale. Vale de sombras, vale tenebroso de trevas macabras, de figuras que não compreendia e não ousava tentar compreender.
A figura inominada, a mais alta e definitivamente mais pavorosa de todas, começou a se aproximar lentamente dela.
Com a distância mais curta entre eles, ela foi capaz de sentir um hálito gelado e horripilante emanando daquela fenda escura que deveria ter um rosto, mas sabe-se lá o que ocultava.
Os pequenos foram timidamente caminhando atrás do mestre, mas, ao contrário deste, sussurravam freneticamente em um dialeto perdido, que humano algum poderia ser capaz de compreender ou ao menos escutar sem perder a sanidade.
Agarrando-se à base da montanha, gelada e molhada com o suor dela, a certeza de que aquilo não se tratava de um sonho tomou conta da descompassada mente dela. As criaturinhas quase saltavam de excitação quando o líder, a criatura horrenda e inominável, cravou uma de suas garras nela com rapidez e força surpreendentes.
Quase desfalecendo em angústia e, agora, dor física insuportável, ela olhou pra baixo e viu um mar vermelho banhando aquele braço pálido que a perfurara. Quando, em um último suspiro desesperado, ela olhou para cima, quase pôde ver três pontos brilhando em vermelho dentro do capuz, além de sentir mais arrebatadoramente a fria brisa fétida que de lá saía.
Ouviu, novamente, aquela mesma voz que falava com ela durante a queda, mas desta vez sem dizer qualquer coisa que ela pudesse compreender. Chorando, abaixou novamente a cabeça, e seu próprio sangue banhando aquele braço hediondo foi a última coisa que viu.
Ela nunca mais acordou.
Partes de seus restos mortais foram encontradas algum tempo depois, em uma região inóspita e abandonada, cheia de superstições e crenças de tal forma que os habitantes de vilarejos próximos ao limite da área sempre repreendem de forma veemente qualquer visitante que manifeste a intenção de lá visitar.
Diziam os supersticiosos ser a região habitada por criaturas malignas e poderosas, lenda esta que certamente amedrontou por muito tempo os corações daqueles que por ali passavam, fomentando o imaginário e a capacidade de criação das mais diversas suposições nas mentes dos que se entregavam ao mistério.
No fim das contas, sendo as lendas e dizeres infundados ou não, uma coisa é certa: todos os caminhantes sempre passavam o mais longe possível ou, se era inevitável, permaneciam o mínimo que podiam nos domínios do famigerado e escuro vale das sombras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário