– Já te disse pra esquecer
iss...
– CALA ESSA BOCA!! Me faz um
favor, faz um favor pro mundo, seu bosta: cale essa maldita boca!
– Escuta aqui, sua... – ele ia
xingar, mas pensou melhor. Porém, antes de conseguir articular sua revigorada
linha argumentativa, ela continuou:
– Ah é?! Agora você vai ficar
falando merda de mim, seu filho da put...
– Charlote. Para. Por favor. Me
deixa falar.
– Tudo, absolutamente tudo que
você fala pra mim não passa da mais pura e fedorenta merda.
– Não é bem assim... calma...
– Só vou ter calma quando você
parar de me encher o saco de vez, seu desgraçado.
– Você está com a cabeça
quente.
– EU TÔ COM A CABEÇA QUENTE?
– Vo...
– ESCUTA AQUI, SEU MERDA. NUNCA
MAIS...
Silêncio.
Do outro lado da linha, tudo o
que ele pôde ouvir foi o mais profundo e irremediável silêncio. Chegava a ser
constrangedor ante a ferrenha discussão que já durava cerca de uma hora e meia.
Ela costumava ter estes ataques. Ele lidava melhor com aquilo quando tinha em
mãos algo para molhar o bico. Não era o caso. E ela estava desta vez levando as
coisas para um nível que até o próprio Leonardo não conseguia prever e muito
menos podia saber como lidar. Se ao menos tivesse algo para beber...
Silêncio.
Preocupado, Leonardo se
preparava para chamar pelo nome dela, tomado pelo receio de que talvez algo de
mais grave tenha acometido os ânimos de sua até então namorada – namorada? Ou
algo menos sério? Ou mais sério? Quem saberia dizer? Não ele, naquele momento.
Quando a absoluta ausência de
som algum se tonou deveras insuportável e ele molhava o bico para perguntar por
ela, a voz retornou, mais branda só que ainda assim firme e irritada:
– Não quero te ver nunca mais,
seu sacana. Nunca mais.
– Se você me desse uma chance
de te fazer parar de pensar merda.
– Eu disse nunca mais.
– Antes me...
Ela desligara.
“Charlote”,
conversava consigo mesmo enquanto afundava ainda mais no sofá, “sua louca descontrolada...”
Lembrou-se de imediato do que
uma tia-avó fuxiqueira sua lhe dissera assim que iniciara o relacionamento com
a moça. “Charlote é nome de mulher
encrenqueira, Leozinho” lhe confidenciara a velha e obesa tia enquanto
empurrava pedaços de leitoa goela abaixo, “toma
cuidado. Gostam de um barraco.”
Um brinde, então, à sabedoria
milenar da tia gorda! Quem diria que, afinal, o aviso se mostraria tão
verdadeiro.
Foi nessa hora que, desgostoso,
Leonardo se lembrou de que não tinha nada para beber em casa.
Diante da problemática situação
que se descortinara, decidiu ir beber alguma coisa em um canto qualquer e,
quando se deu por si, já estava sentado no balcão de um bar próximo de seu
apartamento. Tinha um copo de cerveja na mão e não sabia dizer ao certo quantas
já havia tomado. Não se tratava de um apagão geral, mas simplesmente de uma
ausência de percepção voluntária mesmo, como se Leonardo tivesse engatado o
automático e simplesmente procedido com uma sequência de atos até aquele
momento, quando resolvera voltar a ter controle mental sobre tudo que fazia.
Não sabia se Charlote iria
ligar novamente. Ele não pretendia ter a iniciativa, pois a maneira como ela o
tratara foi demais. Nada justificava aquilo. Pelo menos nada de que ele se
lembrasse nas últimas duas horas e meia.
Olhando em volta, nada de
interessante acontecia no bar.
Somente algumas mesinhas
estavam ocupadas. Pouca coisa mesmo, compreensível para uma quinta-feira em
torno das 20 horas. Em uma, um casal de jovens namorados bebiam Coca-Cola e
conversavam entre risadas descontraídas. Ele, perceptivelmente nervoso,
hesitava em manter as mãos dela junto das suas. Segundo ou terceiro encontro no
máximo. Talvez primeiro. Leonardo não ficou imaginando maiores hipóteses para o
por quê do jovem casal estar tomando Coca-Cola em um barzinho na quinta-feira a
noite. Essas coisas acontecem.
Um pouco mais para o lado, um
velho bebericava um copo de uísque lotado de gelo. Leonardo considerava aquilo
um desperdício duplo: uma pelo gelo, que poderia ser usado em outro drink mais
apropriado – uma caipirinha, por exemplo – e outra pela própria bebida em si,
que perdia toda sua graça se misturada com alguma outra coisa. “Cada um cada um...”
Foi quando olhou para outra
mesa, mais para o fundo do recinto, que seus olhos estocaram e ele não pôde
mais fazer análise alguma de qualquer um dos outros ocupantes do bar.
Uma jovem mulher que, numa
primeira olhada lhe pareceu absolutamente estonteante, sentava-se solitária num
cantinho escuro, olhando atentamente para seu celular enquanto repousava a
outra mão em seu copo que continha uma bebida chique qualquer, realmente
prendeu a atenção. Esperava não estar admirando-a naquele momento de forma
muito indiscreta, pois já não tinha mais a noção apropriada para uma olhadela
disfarçada. Inevitavelmente imaginou um cãozinho sedento, salivando e com a
língua de fora, encarando uma vitrine cheia de frangos assados rodando sem
parar...
Dane-se.
Olhava a moça. Suas mágoas já não
lhe doíam tanto. Ela era tão bela que naquele momento Leonardo associou sua
imagem a uma Angelina Jolie ou Scarlett Johansson. Só não esperava que seu teor
alcoólico estivesse elevado ao ponto de fazê-lo ver tal musa em alguém que na
verdade estaria mais para Danny DeVito ou Tony Ramos.
De qualquer modo, sentia-se
corajoso. Chutando o balde, se preparava para ir até a moça e se oferecer a
pagar uma bebida a ela ou qualquer outra coisa parecida que lhe desse a
permissão para sentar à mesa dela e iniciar um papo qualquer.
Quando finalizou sua cerveja e
já se levantava, viu com tristeza que o velho do copo de uísque cheio de gelo
fora mais rápido: enquanto Leonardo planejava a investida e media as palavras,
o safado da bebida aguada já estava conversando com a moça, de forma que
Leonardo não pôde imaginar o que foi dito, mas era inegável que uma certa
reciprocidade já havia começado a se formar ali, a julgar pelo sorriso com o
qual a moça retribuía a lábia do velho do uísque com gelo.
Consternado, seu subconsciente
imaginou naquele momento a imagem de um pinto abandonado na chuva, longe da
mãe-galinha. Bom, deveria ser mais ou menos aquela sua expressão mesmo.
– Filho da... – lamentou-se
baixinho. Dirigiu-se ao caixa, pois já estava de pé e não queria fazer papel de
besta.
– Noite difícil, hein patrão? –
O infeliz do caixa havia visto a cena toda e compreendido o ocorrido. Leonardo
limitou-se a fazer sua melhor cara de “fazer
o quê”, pagou a conta e foi andando para casa.
No caminho, pensava com certa
esperança masoquista: “Charlote vai ligar”.
Passou pela já fechada lojinha de variedades do indiano rabugento que Leonardo
julgava ter a fachada mais feia da face da Terra. Ainda não sabia como não
haviam demolido aquilo ainda.
Parou no sinaleiro. O ar frio
da noite lhe fazia bem naquele momento, de forma que era até agradável o
caminho para seu apartamento naquela hora da noite. Na verdade, não sabia qual
era o horário. Estava perdido no tempo. Por sorte, conseguia se orientar pelo
espaço.
Avançando novamente, se pegou
imaginando qual teria sido a cantada que o velho lançara para a moça
Scarlett/DeVito. De qualquer forma, não interessava mais. Mais uma vez,
Leonardo passou mais tempo do que desejava procurando as chaves de casa dentro
dos bolsos da calça, com aquele medo crescente de que as havia perdido
novamente.
Charlote demorou uma semana e
meia para ligar.
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