quinta-feira, 23 de abril de 2015

Idas e vindas

– Já te disse pra esquecer iss...
– CALA ESSA BOCA!! Me faz um favor, faz um favor pro mundo, seu bosta: cale essa maldita boca!
– Escuta aqui, sua... – ele ia xingar, mas pensou melhor. Porém, antes de conseguir articular sua revigorada linha argumentativa, ela continuou:
– Ah é?! Agora você vai ficar falando merda de mim, seu filho da put...
– Charlote. Para. Por favor. Me deixa falar.
– Tudo, absolutamente tudo que você fala pra mim não passa da mais pura e fedorenta merda.
– Não é bem assim... calma...
– Só vou ter calma quando você parar de me encher o saco de vez, seu desgraçado.
– Você está com a cabeça quente.
– EU TÔ COM A CABEÇA QUENTE?
– Vo...
– ESCUTA AQUI, SEU MERDA. NUNCA MAIS...
Silêncio.
Do outro lado da linha, tudo o que ele pôde ouvir foi o mais profundo e irremediável silêncio. Chegava a ser constrangedor ante a ferrenha discussão que já durava cerca de uma hora e meia. Ela costumava ter estes ataques. Ele lidava melhor com aquilo quando tinha em mãos algo para molhar o bico. Não era o caso. E ela estava desta vez levando as coisas para um nível que até o próprio Leonardo não conseguia prever e muito menos podia saber como lidar. Se ao menos tivesse algo para beber...
Silêncio.
Preocupado, Leonardo se preparava para chamar pelo nome dela, tomado pelo receio de que talvez algo de mais grave tenha acometido os ânimos de sua até então namorada – namorada? Ou algo menos sério? Ou mais sério? Quem saberia dizer? Não ele, naquele momento.
Quando a absoluta ausência de som algum se tonou deveras insuportável e ele molhava o bico para perguntar por ela, a voz retornou, mais branda só que ainda assim firme e irritada:
– Não quero te ver nunca mais, seu sacana. Nunca mais.
– Se você me desse uma chance de te fazer parar de pensar merda.
– Eu disse nunca mais.
– Antes me...
Ela desligara.
“Charlote”, conversava consigo mesmo enquanto afundava ainda mais no sofá, “sua louca descontrolada...”
Lembrou-se de imediato do que uma tia-avó fuxiqueira sua lhe dissera assim que iniciara o relacionamento com a moça. “Charlote é nome de mulher encrenqueira, Leozinho” lhe confidenciara a velha e obesa tia enquanto empurrava pedaços de leitoa goela abaixo, “toma cuidado. Gostam de um barraco.”
Um brinde, então, à sabedoria milenar da tia gorda! Quem diria que, afinal, o aviso se mostraria tão verdadeiro.
Foi nessa hora que, desgostoso, Leonardo se lembrou de que não tinha nada para beber em casa.
Diante da problemática situação que se descortinara, decidiu ir beber alguma coisa em um canto qualquer e, quando se deu por si, já estava sentado no balcão de um bar próximo de seu apartamento. Tinha um copo de cerveja na mão e não sabia dizer ao certo quantas já havia tomado. Não se tratava de um apagão geral, mas simplesmente de uma ausência de percepção voluntária mesmo, como se Leonardo tivesse engatado o automático e simplesmente procedido com uma sequência de atos até aquele momento, quando resolvera voltar a ter controle mental sobre tudo que fazia.
Não sabia se Charlote iria ligar novamente. Ele não pretendia ter a iniciativa, pois a maneira como ela o tratara foi demais. Nada justificava aquilo. Pelo menos nada de que ele se lembrasse nas últimas duas horas e meia.
Olhando em volta, nada de interessante acontecia no bar.
Somente algumas mesinhas estavam ocupadas. Pouca coisa mesmo, compreensível para uma quinta-feira em torno das 20 horas. Em uma, um casal de jovens namorados bebiam Coca-Cola e conversavam entre risadas descontraídas. Ele, perceptivelmente nervoso, hesitava em manter as mãos dela junto das suas. Segundo ou terceiro encontro no máximo. Talvez primeiro. Leonardo não ficou imaginando maiores hipóteses para o por quê do jovem casal estar tomando Coca-Cola em um barzinho na quinta-feira a noite. Essas coisas acontecem.
Um pouco mais para o lado, um velho bebericava um copo de uísque lotado de gelo. Leonardo considerava aquilo um desperdício duplo: uma pelo gelo, que poderia ser usado em outro drink mais apropriado – uma caipirinha, por exemplo – e outra pela própria bebida em si, que perdia toda sua graça se misturada com alguma outra coisa. “Cada um cada um...”
Foi quando olhou para outra mesa, mais para o fundo do recinto, que seus olhos estocaram e ele não pôde mais fazer análise alguma de qualquer um dos outros ocupantes do bar.
Uma jovem mulher que, numa primeira olhada lhe pareceu absolutamente estonteante, sentava-se solitária num cantinho escuro, olhando atentamente para seu celular enquanto repousava a outra mão em seu copo que continha uma bebida chique qualquer, realmente prendeu a atenção. Esperava não estar admirando-a naquele momento de forma muito indiscreta, pois já não tinha mais a noção apropriada para uma olhadela disfarçada. Inevitavelmente imaginou um cãozinho sedento, salivando e com a língua de fora, encarando uma vitrine cheia de frangos assados rodando sem parar...
Dane-se.
Olhava a moça. Suas mágoas já não lhe doíam tanto. Ela era tão bela que naquele momento Leonardo associou sua imagem a uma Angelina Jolie ou Scarlett Johansson. Só não esperava que seu teor alcoólico estivesse elevado ao ponto de fazê-lo ver tal musa em alguém que na verdade estaria mais para Danny DeVito ou Tony Ramos.
De qualquer modo, sentia-se corajoso. Chutando o balde, se preparava para ir até a moça e se oferecer a pagar uma bebida a ela ou qualquer outra coisa parecida que lhe desse a permissão para sentar à mesa dela e iniciar um papo qualquer.
Quando finalizou sua cerveja e já se levantava, viu com tristeza que o velho do copo de uísque cheio de gelo fora mais rápido: enquanto Leonardo planejava a investida e media as palavras, o safado da bebida aguada já estava conversando com a moça, de forma que Leonardo não pôde imaginar o que foi dito, mas era inegável que uma certa reciprocidade já havia começado a se formar ali, a julgar pelo sorriso com o qual a moça retribuía a lábia do velho do uísque com gelo.
Consternado, seu subconsciente imaginou naquele momento a imagem de um pinto abandonado na chuva, longe da mãe-galinha. Bom, deveria ser mais ou menos aquela sua expressão mesmo.
– Filho da... – lamentou-se baixinho. Dirigiu-se ao caixa, pois já estava de pé e não queria fazer papel de besta.
– Noite difícil, hein patrão? – O infeliz do caixa havia visto a cena toda e compreendido o ocorrido. Leonardo limitou-se a fazer sua melhor cara de “fazer o quê”, pagou a conta e foi andando para casa.
No caminho, pensava com certa esperança masoquista: “Charlote vai ligar”. Passou pela já fechada lojinha de variedades do indiano rabugento que Leonardo julgava ter a fachada mais feia da face da Terra. Ainda não sabia como não haviam demolido aquilo ainda.
Parou no sinaleiro. O ar frio da noite lhe fazia bem naquele momento, de forma que era até agradável o caminho para seu apartamento naquela hora da noite. Na verdade, não sabia qual era o horário. Estava perdido no tempo. Por sorte, conseguia se orientar pelo espaço.
Avançando novamente, se pegou imaginando qual teria sido a cantada que o velho lançara para a moça Scarlett/DeVito. De qualquer forma, não interessava mais. Mais uma vez, Leonardo passou mais tempo do que desejava procurando as chaves de casa dentro dos bolsos da calça, com aquele medo crescente de que as havia perdido novamente.
Charlote demorou uma semana e meia para ligar.


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