Às vezes algumas coisas
simplesmente não eram para ser.
Mergulhado em devaneios
profundos, questões que em qualquer outro momento seriam insignificantes, mas
que, naquele exato instante, faziam sentido e tinham importância, fui
arrastando pé ante pé, como um condenado ao corredor da morte ou um infeliz
marcado a passar um feriado prolongado trancafiado com aquele tagarela chato da
família enquanto na TV não existisse nada além de um looping infinito programas dominicais.
Bem, aquilo seria bom para mim,
eu repetia. Insistia no argumento, cada vez mais batido. A voz irritante
matraqueava no meu ouvido, “alá, é bom,
não, não para não...” e eu continuava me arrastando.
– E ai, cara, vamos entrando!
Nem me toquei que já havia chegado.
Profundos devaneios, afinal.
Poderia estar matando,
roubando, vendendo chicletes, tomando uma cerveja com o meu vizinho no happy hour, lambendo os dedos cheios de
farelos de salgadinhos, fazendo ligações a cobrar ou até assistindo a novela.
– Opa, valeu, vamos lá –
respondi, distraído, ao instrutor na porta, à medida em que era assaltado pela
percepção de que, por ter durado duas semanas, eu não havia de todo desgostado
daquilo, não. Era até algo bacana, que me fazia mexer minha bunda flácida e aliviar
um pouco da tensão. Melhor do que ficar em casa matando mosquitos naquele calor
desgraçado. É que aquele, particularmente, era um dia bem bosta mesmo. E tudo
ficava igual.
Dentro do recinto, do santuário
das artes marciais, avistei de relance todos os equipamentos utilizados, dentre
eles as cordas, as anilhas, os pneus, esparramados no tatame, e alguns de meus
colegas de treino.
Uma dúzia de gatos pingados,
felizes como pinto no lixo. Realmente, eles pareciam felizes. Mais felizes do
que eu. De qualquer forma, o que mais se destacou em meio a toda essa visão
periférica foi um novo aluno que, provavelmente, fazia sua aula de estreia
naquele dia.
Não consegui resistir ao
impulso de encará-lo com certa apreensão enquanto levava minha mochila para o
guarda-volumes. Ele parecia um personagem de desenho animado, uma mistura de
Jackie Chan com Mini-Mim fundida com outra mistura de Professor Aloprado com a Xuxa.
Era um gordinho, de não mais que um metro e meio de altura, japonês do cabelo
tingido de amarelo. Não simplesmente “loiro”. Amarelo. Amarelo, que faria o
pintinho amarelinho empalidecer. Constatei que apesar da pouca altura, o
gordinho samurai das madeixas tingidas me assustava. E, me lançando com um
movimento ligeiro de cabeça um olhar verdadeiro demoníaco e assustador, fez com
que eu quase batesse a testa no cabide, desviando o olhar.
Gordinho medonho.
– Fala mermão – um conhecido me
cumprimentou, aparentemente de bem com a vida, exibindo uma brilhante fileira
de dentes brancos.
– Opa, tudo bão?
– Bem, bem. Pronto pra
arrebentar? – ele utilizou aquele mesmo bordão besta desde meu primeiro dia
ali. E sempre falava isso enquanto dava pulinhos de aquecimento, como um macaco
pisando no asfalto quente. Desnecessário, mas o sujeito era bacana.
– Mal posso esperar...
– Que foi? Cê parece meio
deprê! Ânimo, bicho!
– Não é nada, cara.
– Sei, parece até que cê não tá
aguentando o ritmo dos treinos! Tá curtindo não?
– Não é isso.
– Quê é então?!
– Aquele carinha novo... você
deu uma boa olhada nele? Me causou uma má impressão, só isso...
– Ahn? Quem? – ele indagou,
ainda dando seus pulinhos, enquanto rastreava o ambiente de maneira nada sutil.
– Ah, o Samurai GG.
– Quê?!
– Gente boa, o menino.
Trabalhava lá na firma, e já treinou comigo em outro turno.
– Mas e essa cara toda fechada dele...
– Liga não, ele é tímido, só
isso.
Não respondi, apenas acenei com
a cabeça enquanto esticava os braços em alongamento. Tímido. Tímido quem ficou foi
meu saco, que se encolheu todo depois da fuzilada com os olhos que o gordinho
me lançara.
O colega dos pulinhos ia
acrescentar algo, mas não teve tempo. O instrutor já chamava todos ao centro do
tatame para dar início às atividades.
Tudo nos conformes, nos
primeiros minutos de correria. Correria literal, aliás, pois o instrutor
adorava fazer com que todos nós corrêssemos em volta dele, num exercício de aquecimento
que mais me lembrava uma roleta tresloucada do que algo relevante. Bem, até
aquele momento eu não havia me arrebentado fisicamente. Talvez aquilo tudo
servisse para isso, afinal. Esqueci-me do gordinho macabro.
– Agora, pessoal, cada um pega
uma corda e nós damos seguimento ao jumping
cross, pra finalizar esse aquecimento molengão aí! – Eles adoravam isso
tudo. Adoravam também aquela provocação bobinha que do instrutor. Jumping cross. Que negócio era aquele.
Segui a manada.
Exercício vai, exercício vem, o
instrutor a cada instante mais alucinado, e chegou o momento do treino
específico de chutes.
Abaixei as mãos até as pontas
dos meus respectivos dedões, a fim de estralar as costas. Não adiantou muito. Levantei-me,
coçando o queixo, quando, em verdadeira câmera lenta, me deparei com a extensão
daquele que seria minha dupla nas séries do dia.
– Vocês dois, por serem mais
novos, ficam juntos, beleza? Vamo lá galera, quero disposição! Força nessas
pernas! – o instrutor disse para nós e, depois, para todo o resto da turma.
O gordinho japonês dos cabelos
de sol.
Incrível que ele não tentava em
momento algum ser agradável. Nem um sorriso, nem nada. Talvez fosse tímido
mesmo, ou a própria morte em pessoa. Olhar de morte, pelo menos, ele tinha. Se
bem que, reparei, de perto ele não me parecia tão assustador assim. Apenas
bizarro.
Ele pegou o aparador de chute.
Sim, eu seria o primeiro a descer a perna no gordinho, e eu iria aproveitar
aquilo para mostrar pra ele quem mandava no pedaço.
E, assim, começou. A parte dos
chutes sempre foi legal, o momento mais interessante desse meu início de
treinos.
Desci a perna no aparador,
enquanto o gordinho segurava o equipamento com as duas mãos, exibindo certa
dificuldade. Não precisei levantar muito a perna porque, né, o homem era baixo.
Não obstante às caretas dele e à total fragilidade que ele passava a exibir,
dei o melhor de mim. Chutei uma, duas, três vezes com potência total,
desferindo golpes que certamente demonstravam um avanço com relação ao meu eu
de duas semanas atrás.
Comecei a suar com maior
intensidade, mas não afrouxei a força em momento algum. Continuei dando um
chute atrás do outro, enquanto o gordinho parecia que ia desmontar, largar tudo
e sair correndo peidando e chorando, por conta da expressão de verdadeiro
desconforto que tomava conta de seu rosto redondo.
– Beleza, galera! – Gritou o
instrutor, agora no ápice de sua euforia. – Agora troquem, e dessa vez sem o
aparador! Quero ver essas guardas certinhas, do jeito que a gente treinou
semana passada!
Ok. Aquilo não seria problema,
uma vez que o gordinho demonstrara sua verdadeira face, descendo do pedestal de
orgulho e ameaça e sinalizando que estava mais para bebê chorão do que para
besta fatal.
Passei a mão para enxugar a
testa, ia montando a guarda quando, em um milésimo de segundos, eu vi, e juro
que vi, um sorriso brotar de leve na face daquele gordo japonês nanico. E não
foi um sorriso simpático não. Não se tratava de um cordial cumprimento, e sim
de uma verdadeira promessa. Uma sentença de morte.
Não tive tempo de me posicionar
da maneira correta: o nanico começou a saraivada infernal de chutes na minha
coxa. Ele não alcançava muito mais alto do que aquilo, mas já demonstrou no
primeiro chute uma flexibilidade incrível. E, já nesse primeiro chute, eu pude
constatar algo terrível. O infeliz manjava dos paranauê. Não tive tempo de gritar ou minimamente expressar minha
dor. Outro chute veio, quase me derrubando. E mais outro, e outro, e outro,
cada um uma verdadeira bala de canhão vinda daquela perninha roliça e potente.
Eu não iria desistir assim tão
rápido, obviamente. Procurei abaixar os braços para bloquear os golpes, mas a
perna do gordinho era uma verdadeira metralhadora diabólica. Pá! Pá! Pá! Pá!
Golpes secos na coxa. No momento em que tentei abaixar o braço, um dos chutes
pegou na minha mão e eu achei que a havia quebrado.
O gordinho não dava trégua.
Se eu pudesse olhar em volta,
teria visto que todos os meus colegas, sem exceção, mantinham um ritmo bom,
sim, mas perfeitamente saudável, sem maiores perturbações, tendo tempo para,
inclusive, gracejos e piadas entre um chute e outro.
Eu, por outro lado, tinha tempo
só para dor.
Tive a certeza absoluta de que,
se minha perna não caísse, eu teria de amputá-la.
E o gordinho não parava. E cada
golpe era mais forte que o anterior. Tive vergonha dos meus chutes que, se
comparados àqueles, não passavam de cócegas em sovaco de neném.
Por incrível que pareça, eu não
pude ver uma gota de suor naquela testa enrugada de concentração. Ele queria me
machucar, eu tenho certeza, mas não demonstrava sinal algum de cansaço. Eu, por
outro lado, não aguentava mais. Minha perna já estava certamente roxa, podre,
caindo.
– Pára, cara...
Ele não ouviu.
– Bicho, vai com calma...
Ele continuou no ritmo insano,
desferindo chutes letais, fortíssimos e incrivelmente rápidos. Quando eu
tentava bloquear em um ponto, ele me encontrava em outro e, de qualquer forma,
furava meu bloqueio infantil machucando a área do corpo destinada a proteção.
Foi depois de um chute extra
particularmente dolorido que eu não aguentei e, além do olhar de súplica que eu
já lançava ao gordinho, quase gritei:
– PÁRA, porra!!
Silêncio geral.
Antes de parar, o sádico do
gordo japonês me deu mais dois chutes na área arroxeada da coxa.
Todos olhavam para mim,
inclusive o próprio gordinho.
– É que eu tô com sede, só isso
– expliquei, sem jeito, enquanto me encaminhava ao bebedouro. O instrutor não
se opôs, e acabou encerrando a aula alguns minutos depois.
Minha perna latejava e pulsava,
parecendo que meu coração havia descido um elevador interno até aquela região e
agora não parava de bater. Já nem doía tanto, pois a área toda estava
praticamente anestesiada. Não conseguia andar, e tudo que pude fazer era
desejar nunca ter reparado naquele gordinho. Como se isso fosse, de fato,
resolver algo. Ele me colocou pra correr. A fera se tornou a presa. Gordinho
sem vergonha.
Peguei minhas coisas, passei a
mão vacilante na coxa, que, repito, certamente iria cair no dia seguinte, já
que fora atacada por verdadeiras machadadas mortíferas e fui para o lado de
fora, sentir a brisa noturna bater no rosto.
– Que foi aquilo, cara, tudo
bem? – Era o colega dos pulinhos.
– Opa, tudo tranquilo. Só
estava com sede mesmo, chutei pra valer.
– Ah, sim. Eu também, hoje foi
bom demais.
– É. Bom.
Notando que eu não iria
acrescentar mais nada à conversa, ele se despediu:
– Te vejo semana que vem...
E foi embora, eu poderia jurar,
praticamente pulando.
Eu teria ido naquele momento
também, mas não conseguia me mover. Fiquei lá, encostado na parede, absorvendo
o ar noturno, quando, no meio do resto da turma saindo, saiu também o gordinho.
O cabelinho amarelo dele não tapava sua nuca, que era igualmente bizarra.
Parecia a nuca de um pug, cheia de dobrinhas generosas.
Fiquei quase grato por não ter
que encarar aqueles olhos de tortura milenar novamente, me prometendo mais dor,
mas comemorei cedo demais. Já no meio da calçada, o gordinho desacelerou o
passo e, olhando para trás, me encontrou. O semblante, até então sério,
encarnou novamente aquele sorrisinho de deboche e promessa da mais pura e
profunda dor, algo que eu vivenciara de forma crua. Mas isso tudo se passou em
uma fração de segundos, e o gordinho se endireitou novamente e foi embora.
Eu soube que, se continuasse
naquilo, minha vida se tornaria um inferno, simbolizado num profundo e negro
mar de dor e sofrimento.
Talvez todo esse lance do
gordinho maníaco psicopata fosse um pouco coisa da minha cabeça, influenciado
pelo dia bosta que eu tive. Talvez ele fosse somente o Samurai GG, como meu
colega dos pulinhos havia dito, inocente e inofensivo, mas com um chute forte,
uma verdadeira perna de aço. Talvez ele me olhou naquele outro momento tentando
ser amigável, pedir até desculpas, mas, ao final, era mesmo tímido. O roxo na
minha perna não era algo tão sobrenatural quanto eu pensava, mas tomei uma
decisão naquele momento, ali encostado, influenciado tanto pelo gordinho,
quanto pelo meu estado de espírito naquela fatídica data.
Não queria mais apanhar de
jeito nenhum. Nem de leve, e nem uma saraivada de chutes mortíferos como
aqueles que eu levei – ou pensava ter levado, não sei.
E aquela foi a última vez que
pisei em um tatame.
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