terça-feira, 26 de agosto de 2014

Dois carniceiros no céu

Certa vez, no intervalo de uma aula para outra, sentados em um dos vários bancos do arborizado campus, eu e Jeremias conversávamos.
– Se você parar pra pensar – dizia ele –, hoje em dia as produções andam muito mais caprichadas...
– É... – minhas ponderações daquele momento não acrescentavam muita informação relevante ao raciocínio. Me limitava a concordar.
– Sabe o que eu digo. Não é que não existissem séries boas antes. Mas hoje parece que há um apelo muito forte ao formato. Muitos astros do cinema estão protagonizando ou participando de séries.
Estávamos sentados na sombra que, agradecidos, encontramos naquela manhã sonolenta. Apesar de não fazer muito calor, o sol estava cruel para quem ficasse por muito tempo exposto à sua influência.
O assunto em pauta era entretenimento em geral, um de nossos debates mais comuns. Falávamos de tudo um pouco, e muito disso. Nada em especial, porém, nesta ocasião. Todo o clima contribuía para uma boa cochilada na próxima aula que, certamente, seria um suplício, ainda mais para um ser humano nas condições de atenção que eu detinha naquele instante.
Pessoas iam e vinham aos montes.
Jovens, pessoas mais velhas, gordos, magros, altos, baixos, exóticos, o pessoal da moda, a galera das bikes. Todos querendo fugir daquele sol. E eu estava lá, não pensando em mais nada além da minha cama aconchegante e perfeita que, ainda naquela manhã, fora irremediavelmente abandonada por um ‘eu’ completamente descontente com este fato.
– ... mas a mídia, cara, não deixa dúv... – Jeremias falava qualquer coisa quando percebeu que eu não prestava atenção nenhuma no que ele estava dizendo.
Guardei meu silêncio, cada vez mais esparramado no banco. O lutador vencido pelo sono. Nem a cafeína ajudaria. Pó de guaraná, Red Bull, açaí, uma injeção de adrenalina. Nada disso. Eu era o sonífero ambulante. Um ser zumbificado e desatento.
– Cara, cê tá uma pilha de merda – Jeremias, obviamente, percebeu minha condição. Com toda sua delicadeza expôs bem sua constatação.
– Nada não... só estou... – dizia enquanto bocejava mais uma vez – precisando de uns minutinhos de...
Ele me olhava, esperando a conclusão. Não me veio nada, e desisti desta terrível batalha interna pela busca de uma expressão que se adequasse da maneira devida ao meu estado de espírito.
– Olha, bicho... vou lá para dentro – disse Jeremias enquanto se levantava e iniciava a marcha à sala de aula.
– Vai lá, vai lá... já te alcanço.
Observei. Meu amigo caminhava em seu ritmo normal, sem demonstrar sinal algum de cansaço. Por que eu era assim? Muitos reclamavam de sono também. Mas eu me sentia como se fosse dormir cansado e acordasse depois mais cansado ainda e isso durasse simplesmente o dia todo. Incrível. Trágico.
Reunindo toda a força que me restava e buscando um pouco mais que eu nem sabia que existia, me levantei e segui o exemplo de Jeremias, me lançando àquele sol de manhã sem nuvens que me recebia no trajeto rumo às edificações da faculdade. E o pior de tudo é que eu sabia que no dia de amanhã e no posterior eu ainda estaria assim.
No meio de meu lento e doloroso caminho, olhei para o céu e avistei dois dos urubus que sempre sobrevoavam calmamente por aquelas bandas. E foi assim que me veio, num primeiro (e único) lampejo meditativo do dia, a seguinte constatação: “enquanto alguns se apressam, outros somente esperam com paciência até aqueles primeiros não aguentarem mais correr”. Lancei mais um olhar para cima e encontrei de novo um dos dois bichos pretos e compridos, agora planando bem acima da minha cabeça. “Hoje não, mermão”, disse pra ele. 

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