quarta-feira, 25 de junho de 2014

A barata

Noite escura e gélida de outono, onde o vento castiga de maneira implacável os incautos que se aventuram, por algum motivo, a andar pelas ruas. Noite daquelas onde o mais simples atendimento a uma necessidade emergente do corpo é extremamente complicado ante à possibilidade de se manter aquecido debaixo das cobertas. Noite onde os sádicos espíritos da tristeza fria e inalterável de um clima que castiga até mesmo os que se encontram mergulhados em sono profundo se encontram todos reunidos em uma verdadeira roda de chacota aos sentimentos e percepções humanas.
Noite fria.
A despeito do mais forte impulso urgente que eu tinha de permanecer imóvel como uma rocha em meu – até então frio – aconchegante invólucro de panos e algodão, precisei, pois, atender ao mais urgente chamado da natureza, aquele que rompe de maneira incontestável do mais profundo âmago corporal até a perfeita percepção racional do cérebro em questão de milésimos de segundos, como se sussurrasse: “vamos lá, meu chapa. A hora é agora.”
Combatendo, então, esta verdadeira ânsia e necessidade de me manter aquecido, encarei o vento gelado que se fazia presente já no ambiente pós-cobertas do quarto, vento este que corta a pele como a mais afiada lâmina da mais fatal ferramenta de corte. Não foi fácil. Porém, mal sabia eu que o maior dos perigos e desafios aguardava somente a um cômodo de distância.
Portanto, tendo vencido a primeira e mais crucial etapa do processo que tinha em mente seguir, me encaminhei ao banheiro.
Entretanto, apesar de positivos pensamentos iniciais de que seria somente um breve momento de sofrimento, encontrei, logo após o trancamento da porta, a fera bestial que no box aguardava pacientemente. Aquela noite não seria, pois, nada tranquila. Um embate mortal se aproximava. Porque lá estava ela, gigante, absoluta, forte como um touro e impassível como uma estátua: a barata.
Mas não somente uma barata, ressalto. Tratava-se de uma mega-barata, de um verdadeiro senhor do pânico, de uma gigantesca aparição que faria desmaiar imediatamente qualquer um que tivesse um mínimo de receio para com baratas.
Devia ser, em meus mais insanos pensamentos subconscientes, uma fera indomável. Devia ser, imaginei, uma aberração da natureza, um ente maléfico enviado pelos sete reinos subterrâneos para semear o caos na humanidade. Devia ser, enxerguei, algo que não poderia permanecer nem mais um minuto com vida, isso pelo bem da própria humanidade.
Engolindo em seco e procurando enxotar todos os receios que insistiam em me visitar naquele momento, procurei me manter calmo e resoluto. Encarei, pois, a bicha diretamente nos olhos. Ela, desde muito percebendo minha presença ameaçadora, também se aquietou em um mantra investigativo para com minha pessoa. Apesar deste breve respeito mútuo, ambos percebemos que, para um dos dois, a noite e a vida acabariam ali.
Não pude mais aguentar a pressão. Com um movimento ligeiro e preciso, saquei de maneira astuta o pé esquerdo da Havaianas, numa clara mensagem ao adversário de que eu não iria me render tão fácil à sua aparente intimidação. A barata, em contrapartida, se postou na defensiva, demonstrando completa calma e serenidade, pronta para o duelo que se seguiria.
Avancei.
Ora, nem nas cruzadas, nem nas Grandes Guerras Mundiais, nem em qualquer outro embate que a humanidade conheceu, nunca se teve conhecimento de uma batalha tão disputada e implacável, pelas duas partes. Apesar de não dominar as diabólicas técnicas do voo, a barata se mostrou um adversário preparado, desviando de maneira precisa dos ataques, ao mesmo tempo que procurava desferir golpes mortais contra minha perna. Recuava ao ralo, ao passo que se adiantava sorrateira e velozmente ao espaço ligeiramente ao lado do meu pé.
A chinela cantava ao vento e se deitava ante a inimiga de uma forma incansável. A barata, dando os primeiros sinais de cansaço, não aguentava mais circundar o espaço do box com a mesma agilidade de outrora. Fora acometida, pois, pelo primeiro golpe certeiro.
Se apercebendo que estava perdendo terreno na batalha, a adversária se deu a percorrer outros caminhos no ambiente. Rumou de dentro do box até o espaço próximo da pia, em um evidente e desesperado intuito de me deixar cansado na perseguição.
A empreitada obteve parcial sucesso. Em parte, pois eu realmente persegui com verdadeiro ímpeto destruidor aquele oponente maligno. Porém, em outra parte, a barata não contava com o próprio cansaço pois, apesar de ser uma forte e destemida guerreira milenar, naquele momento não se encontrava em plena forma física: ela se cansou antes mesmo de mim.
Tentando correr de volta ao box, a barata viu que se encontrava diante do inevitável: não poderia mais perseguir naquela tresloucada batalha. Era o fim. Já enxergava, diante de si, a luz no fim do túnel. Se rendeu de maneira honrosa, me encarando com olhos suplicantes e com uma meia-reverência respeitosa, como se me dissesse finalmente, “acabe logo com isso. Você venceu.”
Hesitei. Pois, em verdade, diante de um adversário que joga sua última carta aos seus pés e se rende de maneira tão humilhada, o coração passa a falar mais alto, a empatia começa a fazer efeito no subconsciente e o ser humano pode titubear. Olhei-a novamente. Uma notável guerreira, com um corpo largo e forte, resistente, capaz de nadar centenas de quilômetros no mais sujo lamaçal a fim de encontrar a felicidade na terra prometida de um bolo bolorento ou de um pedaço de torta largado na pia.
Na hesitação, senti dó da minha oponente. Não porque nossas diferenças ali se encerravam, mas porque vi que ela batalhou da forma mais honrosa possível, sem usar de artimanhas baixas e buscando sempre a execução de um combate limpo.
Absorto nestes pensamentos, reparei que a barata não mais reagia em momento algum e pedia com todas as suas forças a justeza de um final digno e limpo. Aquele golpe que eu havia conseguido desferir fora forte demais para as defesas da minha oponente.
Lancei, então, o golpe de misericórdia. O impacto fora tão grande que o barulho produzido pelo contato brusco entre a Havaianas e o corpo da barata produziu um estrondo gigantesco, capaz de ser ouvido a muitas milhas de distância. Estava tudo acabado. A última contração corporal realizada dramaticamente pela barata comprovou isso.
Me esquecendo do frio que anteriormente sentia e até mesmo do motivo que me levou a ir ao banheiro, passei a refletir acerca daquilo que já não era mais aquela barata espirituosa, e sim um cadáver vencido. Pois, a despeito do que muitos podem pensar, alguns nobres adversários merecem ser lembrados. E este é o caso desta barata que demonstrou total sangue-frio e força de vontade, além da mais pura honra e sabedoria.
Porque ela era, apesar da fatal derrota, uma verdadeira vencedora.

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