Todos os dias, Júlio
se deparava com sujos desafios em sua rotina de trabalho.
Gostava de falar para
os amigos que era empregado no ramo da “purificação automobilística”; que “a
boa aparência dos carrões na rua são por minha causa”.
Júlio estava
desempregado até três semanas atrás. Tinha duzentas contas para pagar, e o
número de cobranças em outros campos também não deixava a desejar. Aluguel
quatro meses atrasado. O telefone já não tocava há quase um ano – Júlio deixara
com que fosse cortado. Buscava justificar dizendo que era melhor assim, porque
teria mais paz em casa.
A casa de Júlio tinha
um sofá-cama quebrado, uma televisão que, com o Bombril na antena, só pegava
três canais, um fogão quatro bocas (somente duas funcionavam) e uma geladeira.
Só.
Começara, pois, no
ramo da purificação automobilística. Todos os dias recebia quatro ou cinco
clientes. O patrão dava mostras de impaciência, mas Júlio não dava colher de
chá para a sorte: desempenhava sua função de operador do maquinário – mangueira
e esfregão – do lava-rápido da melhor forma possível, impossibilitando que
reclamações mais pesadas fossem tecidas ao seu serviço.
Um divórcio nas
costas. Tivera duas filhas, uma com nove e outra com onze anos.
As duas morando com a
mãe. Que morava há 340 quilômetros de distância, mas ainda assim mantinha ativa
uma Ação de Alimentos em face de Júlio.
Júlio estava ferrado.
Agora que arrumara o emprego no lava-rápido, tinha certeza de que seria
condenado a pagar pensão para as filhas, apesar de a ex-companheira estar
vivendo de forma muito mais confortável do que ele. Mas Júlio não se importava.
Queria ajudar as meninas, se certificar de que a mãe não iria avacalhar com
tudo.
– Puta cadela – disse
Amaral.
– Ah, cara, ela está
buscando o que é por direito – retrucou Júlio. Não costumava defender a
ex-mulher, muito menos quando estava com os seus amigos, que eram sua única
fonte de descontração. Mas buscava sempre ser razoável. – Nada mais justo do
que eu continuar ajudando as meninas. Não deixaram de ser minhas filhas...
– Julião, é fria –
Roberto, o mais bem-sucedido do grupo, era proprietário de um pet shop que,
porém, estava sendo acusado de maus-tratos aos animais. Processo milionário. –
Essa porra de negócio da justiça aí só dá merda pra classe mais fodida. Nós
somos os fodidos...
– Isso é verdade. A
vida nos fode, aí vem esses advogados chupeteiros pra foder mais ainda – Amaral
odiava o sistema. Para ele, a anarquia seria o caminho da prosperidade.
– Olha, meus chapas,
eu realmente queria ficar aqui papeando com vocês a noite toda, mas vou ter que
puxar o carro – se despediu Júlio, levantando-se para pagar sua parte na conta.
– Tenho que trabalhar amanhã cedo.
– Júlio, você é o
filho da puta mais firmeza que eu já conheci.
– Verdade, porra –
enquanto concordava com Roberto, Amaral tentava se levantar.
Sem sucesso. O álcool
até então ingerido subiu rapidamente, obrigando-o a ficar sentado.
– Valeu, caras. Até a
próxima.
Júlio era um fodido.
Ele não tinha nada.
Com exceção dos amigos, todo mundo abusava da boa vontade dele. No emprego, na
família e até em casa, quando o locador vinha ameaçar tirar Júlio do imóvel.
Verificavam-se, no
cotidiano deste pobre diabo, todos os ingredientes certeiros para uma derradeira
depressão, decaída ou até mesmo coisa pior. Vida bandida, vida largada ou até
mesmo um ponto final na própria vida.
Mas Júlio não era
assim. Preferia pensar que um dia tudo poderia ser melhor, se continuasse
fazendo a parte dele.
Júlio fazia parte
daquela parcela da população que está imbuída do espírito guerreiro do lutador,
daquele que não foge às pendengas e enfrenta de frente as merdas que aparecem
pelo caminho.
Júlio, apesar de toda
a porcaria de rotina que tinha, era um vencedor. E ele sabia disso. E, talvez,
algum dia, todo esse cenário melancólico e desesperador pudesse mudar.
Mudasse ou não, Júlio
continuaria a fazer sua parte, que, no momento, era continuar limpando as
bostas de passarinho dos capôs de seus clientes.
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