domingo, 20 de julho de 2014

A madrugada silenciosa

Eu não conseguia dormir naquela noite chuvosa. A cabeça deitada no travesseiro não fazia efeito algum. Os olhos, que se fechavam num movimento automático, também não eram capazes de me arrastar aos reinos do sonhar. Meu corpo, em desesperadas tentativas de encontrar uma posição mais confortável, acabava por inutilmente se debater indefinidamente e rolar pela cama de forma infrutífera.
Considerava essa uma das piores sensações que já experimentei até aquele momento. A de rolar na cama sabendo que precisa e quer dormir, mas ver todos os esforços de cortejar uma bela noite de descanso não trazerem nada mais do que maiores frustrações.
Após um longo tempo que me pareceu uma eternidade deitado procurando pegar no sono, escutei ruídos de objetos sendo arrastados no andar de baixo da casa. Duas vozes que começaram a se inflamar me prendiam ainda mais no plano da consciência e acabavam por me despertando também uma certa curiosidade. Eu sabia que se tratavam das vozes do meu pai e do sócio dele. Discutiam negócios, a princípio. Pelo menos, era o que eu imaginava, pois os ânimos aparentavam residir em outro nível neste momento.
À medida em que as fortes exclamações de ambos se tornavam mais intensas e audíveis, mergulhei em uma investigação mental acerca do motivo disso tudo. Neste momento, para a frustração de meus planos de mais cedo, eu já me encontrava completamente desperto.
Sentei-me na cama. Já não podia mais disfarçar e me iludir permanecendo deitado. Minha atenção estava totalmente focada naquela verdadeira briga que já tinha ultrapassado os limites do bom senso. Eu (e todos os outros da casa, tinha certeza) podia ouvir os dois esbravejando coisas como “SEU PILANTRA! NÃO FOI CONFIÁVEL NUNCA”“FILHO DA PUTA DE MERDA! SEMPRE SOUBE QUE NÃO TINHA BOLAS” e afins. Sinceramente nunca havia presenciado meu pai tão encolerizado daquele jeito.
Decidi, na ponta dos pés, tentar me aproximar.
Mas foi no exato momento em que meus pés tocaram o frio chão que a discussão cessou repentinamente.
Nenhum grito, nenhuma voz, nenhuma manifestação. De tão abrupta e absoluta que fora a parada, parecia-me que alguém tinha apertado algum botão “mute” e silenciado aqueles dois. Eu só conseguia ouvir os sons naturais que a chuva fazia, e isso talvez estivesse abafando qualquer outro ruído lá de baixo. Talvez eu pudesse conseguir ouvir alguma coisa se descesse as escadas e chegasse mais perto...
Foi enquanto colocava esta ideia em execução, já abrindo a porta do meu quarto, que escutei o baque.
Foi um barulho seco e inquestionável de alguma coisa caindo ao chão, de forma irresistível. Se eu suspeitasse que meu pai guardasse algo assim em sua sala, arriscaria que um grande saco de batatas fora arremessado ao solo.
Seguindo o baque, silêncio absoluto. Somente o barulho da chuva caindo reinava absoluto na casa.
Decidi, por bem, esperar ali mesmo, na soleira da minha porta do quarto.
Esperei, e mais ninguém apareceu. Nem minha mãe, nem empregado algum. Suspeitava que alguma ordem prévia pudesse ter sido dada para que ninguém deixasse seus aposentos, ou até mesmo o medo diante da intensa briga verbal que a residência inteira pareceu ter escutado manteve todos encolhidos em suas camas. Fato é que lá estava eu, naquele corredor que àquela hora da madrugava expressava terror e medo, todo sombrio, escuro e sinistro.
A sala do meu pai no andar de baixo ainda estava mergulhada no mais macabro silêncio. A discussão que antecedera este silêncio conferia ainda mais suspense e terror àquele momento.
Uma onda fria peculiar percorreu minhas pernas acima, passando pela cintura e pelas costas e se encerrando mais fria ainda no meio da minha nuca. Comecei a tremer, não de frio, mas devido a algo que naquele momento eu não conseguia explicar. Meu coração começou a martelar meu peito com tanta intensidade que parecia ter ganho vida própria. Minha boca estava seca, os olhos arregalados, o ar chegava rarefeito aos pulmões e eu, com uma extrema e excruciante dificuldade, dei o primeiro passo adiante.
Ouvidos atentos.
Nada.
Mais um passo. Ainda silêncio.
Outro. E mais outro. Andei um pouco mais depressa, mas ainda assim mantendo a discrição. Alcancei as escadas, e desci aqueles 18 degraus com todo cuidado do mundo, procurando ouvir qualquer movimentação no gabinete do meu velho, em um estado de alerta no qual eu nunca havia ficado antes.
Para minha maior apreensão, a porta estava entreaberta e uma luz bruxuleante e assustadora se projetava para fora.
Sempre que eu assistia a um filme de terror e via os mocinhos fazendo algo completamente estúpido, tal como ir em direção à casa abandonada no meio da floresta em uma noite escura, ou caminhar ao encontro do perigo evidente, que uma criança de cinco anos poderia indubitavelmente supor que existia ao invés de correr e fugir deste perigo, eu entendia que estes idiotas tiveram o terror que mereciam indo na total contramão de qualquer bom senso e pedindo para serem atacados.
Contudo, naquele momento, apesar de meu coração que batia a mil fazer coro com o suor insistente que escorria pela minha testa e com todos os meus sentidos que me mandavam dar meia volta e retornar ligeiro para o meu quarto, meus pés se rebelaram e me guiaram diretamente para a sala do meu pai.
Meu coração batia no pescoço no momento em que bisbilhotei para dentro e, completamente espantado e estupefato, vi pela primeira vez o que aconteceu ali.
Vi meu pai ajoelhado, sorumbático. Vi a sala que eu já conhecia há tempos, sem nada de muito diferente. Mas, no centro dela, para meu total espanto e terror, vi o corpo do sócio do meu pai estirado e sem vida.
Meu pai me notou e levantou mais assustado ainda, pálido, assombrado, porém, resoluto. Sabia o que tinha que ser feito.
Eu não conseguia parar de olhar para o corpo, boquiaberto e sem reação alguma. Não gritei porque a voz me falhou completamente naquele momento e nos momentos seguintes. Me aproximei, e notei o pescoço do sócio marcado e vermelho. Sufocado. Pelo que, eu já não sabia. Pelas mãos do meu pai ou algum outro objeto que ele encontrou.
– Filho – meu pai disse com apreensão na voz, mas mantendo-a firme. – Temos trabalho a fazer.
Eu não era mais criança, mas aquilo era demais. Meu pai havia acabado de assassinar um homem e me pedia para ajudá-lo a acobertar este crime. Olhei finalmente em seus olhos, buscando alguma espécie de amparo. Não encontrei o que buscava no olhar que ele me dirigiu. O que vi foi uma firmeza implacável, e a certeza de que tinha que levar isso a cabo.
“Bem”, conversei comigo mesmo mentalmente, “é meu próprio pai. Preciso ajudá-lo. Ele precisa de mim. Mas... isso... mas isso...” não consegui concluir nem mesmo um pensamento sobre a cena horrenda.
Não respondi nada. Somente sustentei o olhar e fiz que sim com a cabeça.
Meu pai entendeu e se encaminhou depressa aos fundos da casa. Eu fiquei por ali, ainda tentando inutilmente digerir aquela situação hedionda. A atitude ativa que meu pai adotou contrastava completamente com o total assombro que havia se apoderado de mim.
Meus pensamentos fervilhavam incoerentemente em minha mente. Meu pai agora era um assassino. Não era somente um empresário inescrupuloso e bem-sucedido, rígido com seus semelhantes e mais ainda com seus subalternos. Agora, era um assassino. Entretanto, da mesma forma que essa constatação me bateu na face, outra tomou conta de mim com uma força tão grande que senti minhas pernas fraquejarem: eu fazia parte disso também. Eu estava também com a areia movediça do crime me envolvendo irresistivelmente.
Ainda chovia forte. No momento em que olhei para trás na sala mal iluminada, um trovão inundou o recinto com uma macabra luz azul e meu pai, à porta, determinado e taciturno, tomou um aspecto aterrorizante com aquela iluminação repentina. Trazia em suas mãos duas pás. Tínhamos um vasto jardim na residência há quinze anos atrás.
Demoramos quase uma hora para enterrar o corpo o mais fundo possível, debaixo de chuva e mergulhados na escuridão medonha daquela noite. O gramado, agora maculado com aquele cadáver infeliz, recebia de nossas pás as últimas porções de terra para manter um nível de altura proporcional com o resto do terreno.
Voltamos para dentro da casa, ensopados, cobertos de barro dos pés à cabeça e absolutamente exaustos.
No momento em que ambos olhamos para trás a fim de contemplar mais uma vez aquela faixa de terra sem grama na qual havíamos trabalhado, um novo trovão iluminou todo o jardim como que para coroar este pacto silencioso e sinistro que eu havia formado com meu pai. Não havia mais volta. Antes de me endireitar para frente, já era meia-noite e o sino do velho relógio que ficava no canto da sala de estar produziu seu ruído marcando o início de um novo dia no calendário, desta vez mais macabro do que nunca antes.
Hoje, muito tempo depois desta infeliz e aterrorizante noite, afirmo que nunca mais pude ter um sono da maneira que almejava quando me encaminhei para cama antes daqueles acontecimentos.
Todas as noites sou assombrado por um espírito desconhecido, que me visita aonde quer que eu vá. Não importa o quanto eu role na cama ou me esforce para dormir. Já lancei mão de remédios e terapia, mas nada pareceu me ajudar. Sempre sou direcionado automaticamente para a imagem assustadora do semblante amedrontador de meu pai, daquele cadáver horrendo e traumatizante e dos atos profanos que tive que desempenhar naquela madrugada. Quando pego no sono, é um sono agitado e repleto de pesadelos, que acaba ao final durando muito pouco e me trazendo mais cansaço do que repouso. Em todas as noites vejo aquele rosto desconhecido me reprovando e amaldiçoando. Em todas as noites sou assombrado pela lembrança. E, não importa para onde eu vá, em absolutamente todas as noites ainda posso ouvir em alto e bom som aquele relógio diabólico tocando e marcando a consumação da minha própria ruína e assombração eterna.

Nenhum comentário:

Postar um comentário