Eu não conseguia dormir naquela noite chuvosa. A
cabeça deitada no travesseiro não fazia efeito algum. Os olhos, que se fechavam
num movimento automático, também não eram capazes de me arrastar aos reinos do
sonhar. Meu corpo, em desesperadas tentativas de encontrar uma posição mais
confortável, acabava por inutilmente se debater indefinidamente e rolar pela
cama de forma infrutífera.
Considerava essa uma das piores sensações que já
experimentei até aquele momento. A de rolar na cama sabendo que precisa e quer
dormir, mas ver todos os esforços de cortejar uma bela noite de descanso não
trazerem nada mais do que maiores frustrações.
Após um longo tempo que me pareceu uma eternidade
deitado procurando pegar no sono, escutei ruídos de objetos sendo arrastados no
andar de baixo da casa. Duas vozes que começaram a se inflamar me prendiam
ainda mais no plano da consciência e acabavam por me despertando também uma
certa curiosidade. Eu sabia que se tratavam das vozes do meu pai e do sócio
dele. Discutiam negócios, a princípio. Pelo menos, era o que eu imaginava, pois
os ânimos aparentavam residir em outro nível neste momento.
À medida em que as fortes exclamações de ambos se
tornavam mais intensas e audíveis, mergulhei em uma investigação mental acerca
do motivo disso tudo. Neste momento, para a frustração de meus planos de mais
cedo, eu já me encontrava completamente desperto.
Sentei-me na cama. Já não podia mais disfarçar e me
iludir permanecendo deitado. Minha atenção estava totalmente focada naquela
verdadeira briga que já tinha ultrapassado os limites do bom senso. Eu (e todos
os outros da casa, tinha certeza) podia ouvir os dois esbravejando coisas
como “SEU PILANTRA! NÃO FOI CONFIÁVEL NUNCA”, “FILHO DA
PUTA DE MERDA! SEMPRE SOUBE QUE NÃO TINHA BOLAS” e afins. Sinceramente
nunca havia presenciado meu pai tão encolerizado daquele jeito.
Decidi, na ponta dos pés, tentar me aproximar.
Mas foi no exato momento em que meus pés tocaram o
frio chão que a discussão cessou repentinamente.
Nenhum grito, nenhuma voz, nenhuma manifestação. De
tão abrupta e absoluta que fora a parada, parecia-me que alguém tinha apertado
algum botão “mute” e silenciado aqueles dois. Eu só conseguia ouvir os sons
naturais que a chuva fazia, e isso talvez estivesse abafando qualquer outro
ruído lá de baixo. Talvez eu pudesse conseguir ouvir alguma coisa se descesse
as escadas e chegasse mais perto...
Foi enquanto colocava esta ideia em execução, já
abrindo a porta do meu quarto, que escutei o baque.
Foi um barulho seco e inquestionável de alguma
coisa caindo ao chão, de forma irresistível. Se eu suspeitasse que meu pai guardasse
algo assim em sua sala, arriscaria que um grande saco de batatas fora
arremessado ao solo.
Seguindo o baque, silêncio absoluto. Somente o
barulho da chuva caindo reinava absoluto na casa.
Decidi, por bem, esperar ali mesmo, na soleira da
minha porta do quarto.
Esperei, e mais ninguém apareceu. Nem minha mãe,
nem empregado algum. Suspeitava que alguma ordem prévia pudesse ter sido dada
para que ninguém deixasse seus aposentos, ou até mesmo o medo diante da intensa
briga verbal que a residência inteira pareceu ter escutado manteve todos
encolhidos em suas camas. Fato é que lá estava eu, naquele corredor que àquela
hora da madrugava expressava terror e medo, todo sombrio, escuro e sinistro.
A sala do meu pai no andar de baixo ainda estava
mergulhada no mais macabro silêncio. A discussão que antecedera este silêncio
conferia ainda mais suspense e terror àquele momento.
Uma onda fria peculiar percorreu minhas pernas
acima, passando pela cintura e pelas costas e se encerrando mais fria ainda no
meio da minha nuca. Comecei a tremer, não de frio, mas devido a algo que
naquele momento eu não conseguia explicar. Meu coração começou a martelar meu
peito com tanta intensidade que parecia ter ganho vida própria. Minha boca
estava seca, os olhos arregalados, o ar chegava rarefeito aos pulmões e eu, com
uma extrema e excruciante dificuldade, dei o primeiro passo adiante.
Ouvidos atentos.
Nada.
Mais um passo. Ainda silêncio.
Outro. E mais outro. Andei um pouco mais depressa,
mas ainda assim mantendo a discrição. Alcancei as escadas, e desci aqueles 18
degraus com todo cuidado do mundo, procurando ouvir qualquer movimentação no
gabinete do meu velho, em um estado de alerta no qual eu nunca havia ficado
antes.
Para minha maior apreensão, a porta estava
entreaberta e uma luz bruxuleante e assustadora se projetava para fora.
Sempre que eu assistia a um filme de terror e via
os mocinhos fazendo algo completamente estúpido, tal como ir em direção à casa
abandonada no meio da floresta em uma noite escura, ou caminhar ao encontro do
perigo evidente, que uma criança de cinco anos poderia indubitavelmente supor
que existia ao invés de correr e fugir deste perigo, eu entendia que estes
idiotas tiveram o terror que mereciam indo na total contramão de qualquer bom
senso e pedindo para serem atacados.
Contudo, naquele momento, apesar de meu coração que
batia a mil fazer coro com o suor insistente que escorria pela minha testa e
com todos os meus sentidos que me mandavam dar meia volta e retornar ligeiro
para o meu quarto, meus pés se rebelaram e me guiaram diretamente para a sala
do meu pai.
Meu coração batia no pescoço no momento em que
bisbilhotei para dentro e, completamente espantado e estupefato, vi pela
primeira vez o que aconteceu ali.
Vi meu pai ajoelhado, sorumbático. Vi a sala que eu
já conhecia há tempos, sem nada de muito diferente. Mas, no centro dela, para
meu total espanto e terror, vi o corpo do sócio do meu pai estirado e sem vida.
Meu pai me notou e levantou mais assustado ainda,
pálido, assombrado, porém, resoluto. Sabia o que tinha que ser feito.
Eu não conseguia parar de olhar para o corpo,
boquiaberto e sem reação alguma. Não gritei porque a voz me falhou
completamente naquele momento e nos momentos seguintes. Me aproximei, e notei o
pescoço do sócio marcado e vermelho. Sufocado. Pelo que, eu já não sabia. Pelas
mãos do meu pai ou algum outro objeto que ele encontrou.
– Filho – meu pai disse com apreensão na voz, mas
mantendo-a firme. – Temos trabalho a fazer.
Eu não era mais criança, mas aquilo era demais. Meu
pai havia acabado de assassinar um homem e me pedia para ajudá-lo a acobertar
este crime. Olhei finalmente em seus olhos, buscando alguma espécie de amparo.
Não encontrei o que buscava no olhar que ele me dirigiu. O que vi foi uma
firmeza implacável, e a certeza de que tinha que levar isso a cabo.
“Bem”, conversei comigo mesmo mentalmente, “é
meu próprio pai. Preciso ajudá-lo. Ele precisa de mim. Mas... isso... mas
isso...” não consegui concluir nem mesmo um pensamento sobre a cena
horrenda.
Não respondi nada. Somente sustentei o olhar e fiz que
sim com a cabeça.
Meu pai entendeu e se encaminhou depressa aos
fundos da casa. Eu fiquei por ali, ainda tentando inutilmente digerir aquela
situação hedionda. A atitude ativa que meu pai adotou contrastava completamente
com o total assombro que havia se apoderado de mim.
Meus pensamentos fervilhavam incoerentemente em
minha mente. Meu pai agora era um assassino. Não era somente um empresário
inescrupuloso e bem-sucedido, rígido com seus semelhantes e mais ainda com seus
subalternos. Agora, era um assassino. Entretanto, da mesma forma que essa
constatação me bateu na face, outra tomou conta de mim com uma força tão grande
que senti minhas pernas fraquejarem: eu fazia parte disso também. Eu estava
também com a areia movediça do crime me envolvendo irresistivelmente.
Ainda chovia forte. No momento em que olhei para
trás na sala mal iluminada, um trovão inundou o recinto com uma macabra luz
azul e meu pai, à porta, determinado e taciturno, tomou um aspecto
aterrorizante com aquela iluminação repentina. Trazia em suas mãos duas pás.
Tínhamos um vasto jardim na residência há quinze anos atrás.
Demoramos quase uma hora para enterrar o corpo o
mais fundo possível, debaixo de chuva e mergulhados na escuridão medonha
daquela noite. O gramado, agora maculado com aquele cadáver infeliz, recebia de
nossas pás as últimas porções de terra para manter um nível de altura
proporcional com o resto do terreno.
Voltamos para dentro da casa, ensopados, cobertos
de barro dos pés à cabeça e absolutamente exaustos.
No momento em que ambos olhamos para trás a fim de
contemplar mais uma vez aquela faixa de terra sem grama na qual havíamos
trabalhado, um novo trovão iluminou todo o jardim como que para coroar este
pacto silencioso e sinistro que eu havia formado com meu pai. Não havia mais
volta. Antes de me endireitar para frente, já era meia-noite e o sino do velho
relógio que ficava no canto da sala de estar produziu seu ruído marcando o
início de um novo dia no calendário, desta vez mais macabro do que nunca antes.
Hoje, muito tempo depois desta infeliz e
aterrorizante noite, afirmo que nunca mais pude ter um sono da maneira que
almejava quando me encaminhei para cama antes daqueles acontecimentos.
Todas as noites sou assombrado por um espírito
desconhecido, que me visita aonde quer que eu vá. Não importa o quanto eu role
na cama ou me esforce para dormir. Já lancei mão de remédios e terapia, mas
nada pareceu me ajudar. Sempre sou direcionado automaticamente para a imagem
assustadora do semblante amedrontador de meu pai, daquele cadáver horrendo e
traumatizante e dos atos profanos que tive que desempenhar naquela madrugada.
Quando pego no sono, é um sono agitado e repleto de pesadelos, que acaba ao
final durando muito pouco e me trazendo mais cansaço do que repouso. Em todas
as noites vejo aquele rosto desconhecido me reprovando e amaldiçoando. Em todas
as noites sou assombrado pela lembrança. E, não importa para onde eu vá, em
absolutamente todas as noites ainda posso ouvir em alto e bom som aquele
relógio diabólico tocando e marcando a consumação da minha própria ruína e
assombração eterna.
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