Ai de quem se aproximasse
demais daquele banco branco dele quando ele estivesse lá deitado. Aqueles
grandes olhos azuis brilhariam de ameaça e disparariam contra o invasor ondas quentes
de advertência: nem mais um passo, humano
tolo.
Quando cheguei perto dele
naquela noite em que na poltrona branca ele deitava adormecido, pude notar sua
atenção despertada pela minha presença.
A orelha direita se ergueu num
movimento do mais puro reflexo e alerta, e tenho certeza que ele soube que não
estava sozinho e que seu trono de couro furado e arranhado estava sendo objeto
de cobiça.
Passei a andar mais
furtivamente do que nunca, de forma que minha própria atenção se focava
inteiramente naquele animal rebelde.
Foi mais ou menos neste momento
que ele levantou a cabeça mal-humorada devido ao sono interrompido e me encarou
com um olhar ao mesmo tempo cansado e indignado pela afronta, como se eu
estivesse ofendido toda a família dele com palavrões indizíveis.
Eu parei.
Nos encaramos, olho no olho.
Naquele momento, eu soube que ele soube e eu também sabia que uma verdadeira
batalha mental estava prestes a ser travada, pois a posse da confortável
cadeira de couro estava em jogo.
O gato, que naquela cadeira
fazia por vezes seu verdadeiro ninho de poder e dominação, mudou sua expressão
para um sentimento que demonstrava uma sabedoria e perspicácia milenares. Aquele
felino, em seu íntimo, apesar de toda preguiça que tinha e das claras
demonstrações da mais intensa fadiga e desinteresse para com tudo, poderia de
uma hora para outra tornar-se um incansável predador que não mediria esforços
em defender aquilo que entendesse ser seu por direito.
Eu, por minha vez, rapaz jovem
e cheio de vigor físico, não iria me deixar abater pelos olhares carrancudos e
mal encarados daquele bicho folgado.
Ora, eu estava na casa há muito
mais tempo antes do próprio animal nascer. Quem ele pensava que era para
definir aonde iria tirar suas intermináveis e surpreendentemente constantes
sonecas e me privar da escolha de um lugar onde eu pudesse me sentar? Não, pela
ordem da temporalidade e do domínio afetivo, braçal, intelectual e tudo mais,
eu era mais dono daquela poltrona do que ele. O gato tinha que sair.
Foi depois deste intenso embate
mental e troca de olhares fulminante que eu decidi me mover.
Já que mesmo depois de sentir
toda minha poderosa intimidação facial o felino abusado não moveu um só
músculo, optei por esticar a mão para pegá-lo e tirá-lo de lá usando a força.
Naquele exato momento, o danado
abriu a boca em um bocejo deliberadamente cruel e me mostrou aqueles dentes que
pareciam milhares de facas milimétrica e perfeitamente afiadas capazes de, em
um milésimo de segundo e com um mínimo movimento da cabeça daquele animal, furar
em um banho de sangue até a mais dura carcaça viril e máscula de couro calejado
que era o meu braço forte e ágil, no que seria uma impiedosa e dramática
mutilação desumana. Ao mesmo tempo, para completar todo o sadismo da cena, o
gato esticou a pata e alongou seus dedos, revelando verdadeiras garras duras
como ferro e potentes como a mais poderosa lança, verdadeiramente capazes
também de agravar ainda mais o estrago que os dentes maléficos poderiam me
fazer sofrer.
Diante desta rápida e cruel
demonstração do poderio mortal do felino, resolvi por bem que o sofá ao lado
estava muito mais confortável do que aquela poltrona.
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