quinta-feira, 31 de julho de 2014

Território de um tirano felino

Ai de quem se aproximasse demais daquele banco branco dele quando ele estivesse lá deitado. Aqueles grandes olhos azuis brilhariam de ameaça e disparariam contra o invasor ondas quentes de advertência: nem mais um passo, humano tolo.
Quando cheguei perto dele naquela noite em que na poltrona branca ele deitava adormecido, pude notar sua atenção despertada pela minha presença.
A orelha direita se ergueu num movimento do mais puro reflexo e alerta, e tenho certeza que ele soube que não estava sozinho e que seu trono de couro furado e arranhado estava sendo objeto de cobiça.
Passei a andar mais furtivamente do que nunca, de forma que minha própria atenção se focava inteiramente naquele animal rebelde.
Foi mais ou menos neste momento que ele levantou a cabeça mal-humorada devido ao sono interrompido e me encarou com um olhar ao mesmo tempo cansado e indignado pela afronta, como se eu estivesse ofendido toda a família dele com palavrões indizíveis.
Eu parei.
Nos encaramos, olho no olho. Naquele momento, eu soube que ele soube e eu também sabia que uma verdadeira batalha mental estava prestes a ser travada, pois a posse da confortável cadeira de couro estava em jogo.
O gato, que naquela cadeira fazia por vezes seu verdadeiro ninho de poder e dominação, mudou sua expressão para um sentimento que demonstrava uma sabedoria e perspicácia milenares. Aquele felino, em seu íntimo, apesar de toda preguiça que tinha e das claras demonstrações da mais intensa fadiga e desinteresse para com tudo, poderia de uma hora para outra tornar-se um incansável predador que não mediria esforços em defender aquilo que entendesse ser seu por direito.
Eu, por minha vez, rapaz jovem e cheio de vigor físico, não iria me deixar abater pelos olhares carrancudos e mal encarados daquele bicho folgado.
Ora, eu estava na casa há muito mais tempo antes do próprio animal nascer. Quem ele pensava que era para definir aonde iria tirar suas intermináveis e surpreendentemente constantes sonecas e me privar da escolha de um lugar onde eu pudesse me sentar? Não, pela ordem da temporalidade e do domínio afetivo, braçal, intelectual e tudo mais, eu era mais dono daquela poltrona do que ele. O gato tinha que sair.
Foi depois deste intenso embate mental e troca de olhares fulminante que eu decidi me mover.
Já que mesmo depois de sentir toda minha poderosa intimidação facial o felino abusado não moveu um só músculo, optei por esticar a mão para pegá-lo e tirá-lo de lá usando a força.
Naquele exato momento, o danado abriu a boca em um bocejo deliberadamente cruel e me mostrou aqueles dentes que pareciam milhares de facas milimétrica e perfeitamente afiadas capazes de, em um milésimo de segundo e com um mínimo movimento da cabeça daquele animal, furar em um banho de sangue até a mais dura carcaça viril e máscula de couro calejado que era o meu braço forte e ágil, no que seria uma impiedosa e dramática mutilação desumana. Ao mesmo tempo, para completar todo o sadismo da cena, o gato esticou a pata e alongou seus dedos, revelando verdadeiras garras duras como ferro e potentes como a mais poderosa lança, verdadeiramente capazes também de agravar ainda mais o estrago que os dentes maléficos poderiam me fazer sofrer.
Diante desta rápida e cruel demonstração do poderio mortal do felino, resolvi por bem que o sofá ao lado estava muito mais confortável do que aquela poltrona.

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