domingo, 31 de maio de 2015

Visita no turno da noite

– Raimundão! Ê, Raimundão! – chamou o balconista pela janelinha de dentro da conveniência. Raimundo acabara de recolocar a mangueira em seu devido lugar. – O Branquinho quer falar com você lá na sala dele...
Agradecendo com um aceno de cabeça, Raimundo começou a se encaminhar lentamente para os fundos do estabelecimento, onde ficava um pequeno complexo acinzentado contendo, dentre espaços destinados aos próprios funcionários, um gabinete dentro do qual o gerente do posto de gasolina se aninhava e vivia lançando comandos administrativos bestas aos subordinados pelo telefone.
Humildemente, o frentista bateu de leve na porta do chefe e colocou a cabeça para dentro da sala.
– Oh, olá, Raimundo, gostaria de dar uma palavrinha contigo – o gerente, apelidado sarcástica e secretamente de Branquinho pelos empregados do posto, se pavoneava com diversos dos seus itens excêntricos de coleção espalhados pela mesa. – Pode se sentar, homem, não tenha medo – emendou o gerente. O homem não era má gente, afinal.
Coçando a cabeça, já aguardando pelo pior, Raimundo se sentou na dura poltrona cor de carne dos anos 80 enquanto revezava seu olhar de Branquinho para anéis de lata jogados pela mesa e vice-versa.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aquela do gordinho da perna de aço

Às vezes algumas coisas simplesmente não eram para ser.
Mergulhado em devaneios profundos, questões que em qualquer outro momento seriam insignificantes, mas que, naquele exato instante, faziam sentido e tinham importância, fui arrastando pé ante pé, como um condenado ao corredor da morte ou um infeliz marcado a passar um feriado prolongado trancafiado com aquele tagarela chato da família enquanto na TV não existisse nada além de um looping infinito programas dominicais.
Bem, aquilo seria bom para mim, eu repetia. Insistia no argumento, cada vez mais batido. A voz irritante matraqueava no meu ouvido, “alá, é bom, não, não para não...” e eu continuava me arrastando.
– E ai, cara, vamos entrando!
Nem me toquei que já havia chegado.
Profundos devaneios, afinal.
Poderia estar matando, roubando, vendendo chicletes, tomando uma cerveja com o meu vizinho no happy hour, lambendo os dedos cheios de farelos de salgadinhos, fazendo ligações a cobrar ou até assistindo a novela.
Mas não. Estava lá, na minha segunda semana de aulas de muay thai.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Idas e vindas

– Já te disse pra esquecer iss...
– CALA ESSA BOCA!! Me faz um favor, faz um favor pro mundo, seu bosta: cale essa maldita boca!
– Escuta aqui, sua... – ele ia xingar, mas pensou melhor. Porém, antes de conseguir articular sua revigorada linha argumentativa, ela continuou:
– Ah é?! Agora você vai ficar falando merda de mim, seu filho da put...
– Charlote. Para. Por favor. Me deixa falar.
– Tudo, absolutamente tudo que você fala pra mim não passa da mais pura e fedorenta merda.
– Não é bem assim... calma...
– Só vou ter calma quando você parar de me encher o saco de vez, seu desgraçado.
– Você está com a cabeça quente.
– EU TÔ COM A CABEÇA QUENTE?
– Vo...
– ESCUTA AQUI, SEU MERDA. NUNCA MAIS...
Silêncio.
Do outro lado da linha, tudo o que ele pôde ouvir foi o mais profundo e irremediável silêncio. Chegava a ser constrangedor ante a ferrenha discussão que já durava cerca de uma hora e meia. Ela costumava ter estes ataques. Ele lidava melhor com aquilo quando tinha em mãos algo para molhar o bico. Não era o caso. E ela estava desta vez levando as coisas para um nível que até o próprio Leonardo não conseguia prever e muito menos podia saber como lidar. Se ao menos tivesse algo para beber...

domingo, 22 de março de 2015

O vale das sombras

Caía.
Embaixo de si, nada além das fortes rajadas de vento que vinham de encontro com seu corpo paralisado que, sob a influência irresistível da gravidade
você
não
devia
...
caía.
Olhava à volta. Nada além de escuridão, no que parecia ser uma parede cavernal úmida e perigosa. A agonia crescia em seu peito, pois a queda parecia não ter fim – num abismo infernal que, apesar de conter toques evidentemente oníricos, não se tratava de um daqueles simples sonhos de queda livre. Sua própria alma estava gelada e, se pudesse em sua consciência apostar em algo, apostaria que aquilo tudo era

sexta-feira, 13 de março de 2015

Bateria

Acordou no meio da noite, a escuridão envolvendo o quarto quase que por completo à exceção da luzinha da bateria do notebook que piscava sua fraca claridade azul para avisar que estava em processo de recarga.
Estava meio zonzo. Sonho ruim. Olhou de lado, virou para o outro, pra cima e para baixo, sem conseguir decifrar seus próprios sentimentos imediatos.
Ora, por que havia acordado àquela hora e, mais, por que se levantou assim? Poderia muito bem ter permanecido ali, deitado e paciente, esperando o sono voltar a abraça-lo.
Tolo, pensou.
Resmungando, colocou as pernas na beirada da cama. “Que merda é essa?”
Sabia, com certeza, que não precisava ir ao banheiro e que sua garganta não estava seca, não necessitando naquele momento se levantar para ir à cozinha buscar água. Duas necessidades tidas como urgentes que descartara de pronto. Contudo, mesmo assim, sentia falta de algo. Mas independente disso, amaldiçoando aquele momento, não sabia o que procurar, ou onde, ou como.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Terra cinza

para onde foram os lírios? pois em frente vejo só destruição
para que destino seguiram a grama e os pomares? às cinzas se fundiram?
pois só vejo cinzas daquilo que foi fogo
fogo que aqui acabou com tudo aquilo que se era bom de se ver
e enquanto olho, meus olhos parecem não querer conhecer
aqueles que queriam que conhecêssemos como nossos proprietários
num momento de fúria, à paisagem causaram dor
e a dor vem em mim agora
forte e
única
porque sei que além dos lírios destruídos
a terra outrora tão bonita e agora arruinada, cinza e em chamas, infértil e ferida
também foi palco da matança daqueles meus
que comigo dividiam a ceia e
comigo passavam a madrugada e
junto de mim trabalhavam e apanhavam e
sabiam saborear a brisa do final de tarde,
apesar de todo sofrimento;
os que não jazem junto à terra devastada
correram ligeiros tentando alcançar o distante destino
para, todos sabemos, morrerem logo
pela mão do carrasco
ou pelos dissabores do caminho
oh, as lágrimas em meus olhos
não me impedem de reconhecer, à frente, a cavalo, aqueles que antes nos açoitavam
mas agora nos destruíram
chegando, golpeando seus animais, com o ódio demoníaco da destruição
nos próprios olhos;
próprios demônios a galope
de armas em punho e semeando devastação por onde passam;
e eles vêm em minha direção
estremecendo, sinto no coração
o medo diante de toda esta escuridão
mas minhas pernas não querem mais correr
meu ser não quer mais fugir
e nem um grito consegue subir garganta acima
pois tudo o que vejo e sinto
não passa do frio punho do destino
caindo sobre nós
demônios a galope
olho mais uma vez para o lado, as cinzas a dançar quilômetros a fio
onde o fogo já não mais se banqueteia
satisfeito pela morte já provocada
demônios a galope
para onde foram os lírios?


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Manhã de sexta

6h14 da madrugada e eu, irremediavelmente, já me encontro desperto. Não teve jeito. Novamente, acordei por volta de uma hora e seis minutos antes do meu despertador gritar para cumprir sua função de me tirar do sono pesado.
Devagar, abro os olhos, fechando-os logo em seguida depressa. Mais uma vez, abro-os. Fecho. Abro. E o processo se repete até que não só meu subconsciente, mas boa parte da minha cognição perceptiva e até mesmo alguns outros músculos corporais tenham ciência de que desta vez o repouso não se estenderá mais. Abro os olhos.
Ainda deitado na cama, me deparo com aquilo que é a pior parte deste processo todo: se levantar da cama. Não, o pior de tudo não é conseguir abrir os olhos de vez ou se convencer de que o dia começou mais cedo. A parte mais problemática é realmente a de colocar todo o conjunto corporal para trabalhar nos esforços cooperativos de se mexer com o objetivo final de sair daquilo que é o santuário aconchegante e irresistível do sono. Uma das escolhas mais difíceis que alguém que acordou cedo demais toma é a de se retirar da cama. É como se durante o processo uma parte sua ainda ficasse por lá, não importa a maneira com a qual se levante – mais rápido ou com maior demora. Dói de qualquer forma.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Canudo gigante no céu azul

Rodava com o carro exibindo o braço esquerdo pendurado na janela aberta aos raspões da brisa suave, mas pesada que se chocava com aquele corpo em movimento. O sol da tarde já havia se escondido atrás dos edifícios mais altos ao redor, de forma que a luz forte do astro que habitualmente obriga a todos os motoristas a abaixar o quebra-sol e mesmo assim fazer fendas com os olhos para enxergar se despedira minutos atrás. Apesar do trânsito leve, a avenida estava tranquila para se movimentar.
No rádio, Springsteen cantava “You’re Missing”. O carro ia à cerca de 50 por hora, sem pressa. Ele sentia-se em um momento contemplativo, só que não sabia ainda ao certo do quê.
Olhou para fora através de seus óculos de sol de lentes verde e observou as pessoas, algumas poucas correndo para manter a forma, a maioria com pressa para chegar a algum lugar e algumas outras cansadas depois de mais um dia de trabalho. Entendia-as.
“Everything is everything...” ouvia-se no interior do seu carro.